Vitória? Victória? Não, Victoria, sem acento, à inglesa, tal como a rainha. Aos 28 anos, a atriz já nem liga quando lhe escrevem mal o nome. “A minha mãe sim, reclama sempre”, admite. Cresceu no Algarve, filha de pai português e mãe britânica, mas aos 15 anos deu o salto para Lisboa e não era a adolescente mais sociável do mundo. Com 17, começou a representar. “Uma experiência muito gira” é como descreve a estreia nos Morangos com Açúcar. Anos depois, encontrou o cinema e a sétima arte amadureceu-a.
Hoje, tem a carreira dividida entre novelas, séries e filmes. O último, Aparição, estreia já nesta quinta-feira. Victoria Guerra é Sofia, a protagonista da adaptação da obra literária de Vergílio Ferreira. Há um ano, fez parte das 10 European Shooting Stars, uma seleção de talentos promissores apresentada na Berlinale. Aí, a porta lá para fora abriu-se ainda mais. Em Até Nunca, filme de 2016, foi dirigida por Benoît Jacquot. No ano passado, estreou The Wilde Wedding, uma comédia americana onde contracena com John Malkovich, Glenn Close, Patrick Stewart e Minnie Driver. Mas foi Andrzej Zulawski, realizador polaco, que a levou ao limite, no filme Cosmos. Experiência a repetir. Afinal, Victoria ainda agora começou.
[o trailer de “Aparição”, filme de Fernando Vendrell baseado na obra de Vergílio Ferreira:]
Quando aceitou este papel, com que Sofia se deparou?
Na verdade, deparei-me com uma mulher com muitas camadas. Uma mulher que vive, não quero dizer numa aldeia, mas numa província, em plena ditadura e numa época em que as mulheres não tinham muitos direitos e em que casar e ter filhos era o futuro normal. Deparei-me com uma mulher que não queria nada disso, mas que ao mesmo tempo não sabia o que queria e encontrava na autodestruição a forma de se sentir viva. Para ela, a morte, ou a quase morte, era a forma de se sentir viva. Foi com esta mulher que me deparei, muito louca.
E como é que esta personagem lhe foi parar às mãos?
O Fernando Vendrell tinha falado comigo por causa da série “Três Mulheres” e na altura já estava a preparar este filme. Eu estava a fazer uma novela, portanto não sabia se era possível. Conversámos sobre a personagem e falámos com a produção da SP. Tenho de agradecer a toda a equipa os esforços que fizeram para eu poder fazer este filme durante uma novela, o que nem sempre é fácil. Foi um mês e meio de rodagem e terminámos em dezembro de 2016, estava eu a meio da novela.
Esta não foi a sua primeira personagem de época. Elas exigem um trabalho redobrado?
Sempre. Há uma série de trejeitos próprios e a forma de estar é completamente diferente, ainda mais no caso das mulheres, que naquela época tinham outra educação. Foi um trabalho redobrado no sentido de perceber como é que elas andavam, como é que elas pensavam, como é que se sentavam, como agiam com os homens. Posso dizer que essa pesquisa é sempre super divertida e gratificante.
Que sítio é este?
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Chama-se Foco e é uma galeria de arte muito pouco convencional. Localizada na Rua da Alegria, em Lisboa, recebe exposições de fotografia, cerâmica e design e instalações de arte. A próxima inaugura no dia 5 de abril e apresenta as esculturas em cerâmica de Ana Cruz e Maria de Betânia. Além de arte, a galeria esconde também um recanto de azulejos brancos. Foi lá que fotografámos a atriz.
Nem toda a sua família tem raízes portuguesas. Como é que se preparou para este papel?
Sim, o meu pai é português. Neste caso, o filme é baseado numa obra literária, portanto, o livro foi o meu instrumento de trabalho e foi a partir dele que construí a Sofia. É a segunda vez que faço uma adaptação e devo confessar que é muito bom ter uma obra literária a ajudar. O guião já estava fechado, mas há todo um universo que pode ser explorado na literatura e no cinema nem tanto. Foi muito bom ter o livro para conhecer as várias camadas desta Sofia. Lá o universo dela é mais rico e isso ajudou-me na construção da personagem.
Diria que tem hoje mais voz quando trabalha com um realizador?
Nunca senti que não me ouvissem. É claro que o cinema é diferente das novelas. De certa maneira, há um realizador que manda naquilo tudo, enquanto numa novela são vários realizadores, é muito diferente. No cinema, há um maestro e temos de confiar nele. Nunca senti dificuldade em comunicar e sempre gostei muito daquele trabalho conjunto entre atores e realizador. Tenho a minha preparação em casa, à minha maneira, as minhas 1500 pesquisas, neste caso, através do livro. Depois, há uma segunda fase, em que conheço melhor os atores e o realizador, em que existem ensaios e trocas de ideias. De repente, pode surgir uma ideia qualquer de um ator sobre aquela personagem, algo que, se calhar, eu nem teria visto. É disso que mais gosto.
Também sempre tive muita sorte com os meus colegas e com os realizadores. Talvez em televisão sinta hoje que tenho mais voz. Acho que os trabalhos que tenho feito noutros formatos me deram mais bagagem para dar a minha opinião. Mas não vem de fora, sou eu, enquanto atriz que cresceu muito e que aprendeu com realizadores fantásticos e atores incríveis, que me sinto mais à vontade para exprimir o que penso. Honestamente, nunca tive um realizador que não me desse abertura para isso.
Mas dá mais gozo fazer cinema do que televisão?
Há um tempo no cinema — a preparação, a rodagem — que me agrada muito. A televisão é uma correria, mas ao mesmo tempo também te dá outras ferramentas. Ganha-se uma ginástica emocional e mental e uma técnica gigante, com 20 cenas por dia, umas a chorar, outras a gritar, outras a rir. Além disso, é uma obra aberta. Tudo pode acontecer, portanto, também tenho de estar pronta para qualquer mudança repentina na personagem e adaptar-me a ela. É interessante. E leva tudo muito tempo, sobretudo as novelas. São dez ou 12 meses e isso consegue ser realmente estafante. O cinema é mais condensado, somos um núcleo muito mais fechado e tem outro tempo — uma, duas, três cenas por dia.
Apesar da exigência, fez num filme enquanto gravava uma novela. Como é que conservou a sanidade mental?
Não conservei! Estou a brincar, claro… A SP foi absolutamente incrível. Nisso, acho que foi mais difícil para eles gerir o tempo do que para mim. Um dia era esquizofrénica na novela, à noite viajava para Évora e no dia a seguir era a Sofia, que não era esquizofrénica mas também tinha ali um lado doentio. Mas em Portugal, os atores estão a fazer cada vez mais coisas, mais filmes, mais séries, mais novelas. É importante que as televisões deem espaço e oportunidade aos atores para fazerem outras coisas. A verdade é que me deu um gozo tremendo poder fazer este filme durante a novela, foi assim uma lufada de ar fresco pelo meio.
Fala de mais conteúdos televisivos e cinematográficos em Portugal, mas acha que estão a ser melhores?
Não sei. Sou absolutamente contra o fazer só por fazer, não acho que seja solução. De facto, há cada vez mais coisas. Se têm a qualidade que deviam ter? Algumas sim, outras não. Também é importante o público habituar-se mais à língua portuguesa ou ao nosso sotaque. Fomos bombardeados durante anos com novelas brasileiras e ainda estamos a aprender a ouvir o nosso português. Acho que cabe à RTP transmitir séries portuguesas, além das novelas, que também servem esse propósito. Agora, a verdade é que o país não tem muito dinheiro. Não há dinheiro, não há uma indústria. O Estado até pode dar o triplo do financiamento para um filme, mas isso não vai fazer com que mais pessoas vão vê-lo ao cinema. Percebo que seja complicado, por isso também acho importante que os projetos sejam pensados em função dos orçamentos.
Os filmes portugueses continuam a ter pouco sucesso junto do grande público e as curtas passagens pelas salas são um reflexo disso. Acha que os conteúdos televisivos deviam funcionar mais como uma ponte para o cinema?
Sem sombra de dúvida. Acho que com as séries da RTP isso é possível. Estão a fazer-se mais séries, que fogem ao género novela, mas também mais cinema, não quero dizer comercial, mas ligeiro, outro tipo de cinema que pode ser bom para chegar ao público. Não sei bem qual é a solução. Porque se formos olhar para o “Star Wars”, o filme mais visto no mundo inteiro, também foi visto por muito pouca gente em Portugal. Há pouca gente a ir ao cinema em Portugal, ponto final. Muitas vezes, também sinto que não se sabe dos filmes portugueses. Não há outdoors, não aparecem nos jornais, quando se fala é na semana de estreia e, dias depois, já saíram do cinema. Passa por tanta coisa… Nos Estados Unidos, há filmes que nem chegam às salas, vão diretos para a Netflix. Está tudo a mudar.
Mas podemos transpor isso para o consumo de cultura no geral?
Claro que sim. Estamos na era do “agora, já”. Sempre gostei de cultura, fui educada nesse sentido, para ter os meus próprios gostos. Percebo perfeitamente que, numa altura em que o Instagram dá acesso a tudo num segundo, as pessoas não saiam do sofá.
Resiste a essa tentação?
Eu também vou às redes socais, obviamente, e descubro coisas através delas. Mas depois, há momentos em que tenho perfeita noção de que é um vício. Às vezes penso: ‘Acabei de passar uma hora a fazer scroll e não aprendi nada’.
Há um ano, esteve entre as 10 European Shooting Stars, na Berlinale. Houve frutos dessa exposição internacional?
Sim, tenho feito muitos castings no último ano, com as diretoras de casting que conheci lá.
E continua a fazer muitas self tapes?
É uma coisa muito moderna e muito fixe e que começou depois de ter arranjado um agente nos Estados Unidos. Basicamente, já não é assim tão complicado arranjar vistos para os atores irem para a América. Além disso, há cada vez mais coisas a serem filmadas na Europa (é mais barato), há diretores de casting espalhados pelo mundo inteiro e todos os dias aparecem oportunidades novas. Em vez de ter de voar para os Estados Unidos, para Londres ou para Paris, posso estar aqui em Portugal. Enviam-me o texto e, na minha sala, com o meu iPhone e um kit de luzes, gravo. Envio por WeTransfer e é assim que funciona. Em segundas fases, já tive de voar para Londres, mas também já fiz Skype calls com realizadores. Mas há cada vez mais atores a fazerem self tapes.
E o seu agente americano tem cuidado bem de si?
Sim, não tenho razão de queixa. É a forma de conseguir chegar a castings aos quais, em Portugal, não há acesso, para séries, para filmes. Os grandes blockbusters de Hollywood não são algo que almeje, mas também não ando a fazer castings para isso. Mas há muitas séries a serem feitas todos os dias. Cá é que não há muitos diretores de casting. Tens a Patrícia Vasconcelos e mais uns quantos, mas normalmente são os produtores e os realizadores que escolhem os atores. Lá fora não, e um único diretor pode estar a preparar dez séries e dez filmes ao mesmo tempo. Fazes um casting e ele pode lembrar-se de ti numa próxima vez.
Já se sentiu em desvantagem por estar em Portugal?
Desvantagem, não. Às vezes, e sobretudo nos Estados Unidos, sinto que não sou nem americana, nem inglesa, nem portuguesa. Sou estrangeira e imensas vezes sou latina. Uma vez fiz um casting para uma super latina e passei à segunda fase. Nunca me vou esquecer. Estava a fazer a self tape com um amigo e só dizia: ‘Eu, latina? Eu tenho tanto de latina como… sei lá’. De repente, recebo um telefonema a dizer: ‘Adoraram-te, consegues voar até Los Angeles?’. Não dava. Disseram-me para fazer Skype com o realizador e uma segunda self tape. Fizemos, mas nós só nos ríamos. Em Portugal sou tudo menos latina, chego aos Estados Unidos não sou bem latina, mas também não sou americana.
Nunca pensou em ir viver para Inglaterra?
Já pensei nisso, mas a verdade é que tenho estado sempre a trabalhar, tenho tido muita sorte. E, para ser honesta, prefiro fazer um bom projeto cá do que um mau projeto lá fora. É possível que passe agora uma temporada em Inglaterra, tenho um agente em França, resultado da minha passagem por Berlim. Os franceses nisso são muito mais abertos a sotaques e a línguas e isso é bom.
É escrupulosa ao ponto de recusar um trabalho?
Já recusei trabalhos, claro. Os “nãos” são tão importantes como os “sins”. Foi assim sempre. Há muitos “nãos” que têm a ver com timings. Já aconteceu ter de dizer “não” por estar a fazer outro trabalho ao mesmo tempo e aí tenho de ser justa. Agora, há projetos que não interessam por variadíssimas razões — porque estou muito cansada e não estou a 100% para me poder entregar a 100%, porque é um tipo de personagem que já fiz várias vezes e gostava de experimentar uma coisa nova. Não é uma coisa tipo: ‘Ah, agora posso dizer que não porque sou isto ou aquilo’. Não, de todo. Tem a ver com escolher o que me interessa para poder crescer como atriz. Também já aconteceu estar completamente exausta ou não ter muito tempo, mas querer muito trabalhar com aquele realizador. Não têm dinheiro, são dois dias, uma curta metragem, vou trabalhar no fim de semana, mas quero muito fazer esta personagem.
Sendo o meio tão pequeno, não receia as consequências desses “nãos”?
Claro que sim. Em Portugal, sinto que, às vezes, o dizer “não” pode prejudicar-nos no futuro. Mas enquanto profissionais, não podemos viver presos a isso. Sou honesta, mas se não quiserem trabalhar comigo no futuro por causa disso, bom, problema deles.
No meio profissional, alguma vez se sentiu desrespeitada por ser mulher?
Não, de todo. Acho que pela minha postura e também por sermos pequenos. Todas as áreas têm problemas desse género, não vale a pena particularizar o mundo da representação. O que é que acontece neste mundo? Estamos a trabalhar com emoções, com o nosso corpo, com uma série de ferramentas que podem confundir e provocar situações menos confortáveis, óbvio. Acho que cabe-nos bater o pé aí e saber distinguir as coisas. Por outro lado, é um meio muito pequeno e posso estar muito enganada, mas arrisco-me a dizer que não existem assim grandes diferenças de pagamento entre homens e mulheres. Acho que até há papéis mais interessantes para mulheres do que para homens, acho mesmo. Pessoalmente, nunca tive nada. Se tive, resolvi as coisas como e onde tinham de ser resolvidas.
Está quase a fazer 29 anos. É daquelas pessoas a quem a aproximação dos 30 causa um frio na barriga?
Sim, ainda ontem tinha 21. Dos 20 aos 25, passou a voar e dos 25 até agora também. O friozinho na barriga é por pensar nos 30 como a idade que, quando era miúda, associava às mulheres já casadas, com filhos e com trabalho. Ainda me sinto tão miúda e, ao mesmo tempo, olho para trás e penso: ‘Estou a trabalhar desde os 17’. Os 30 são aquela idade de amadurecimento, de serenidade e de calma, pelo menos é o que todas as minhas amigas dizem, portanto, estou na esperança que me tragam isso.
Mas imaginou-se com mais objetivos atingidos nesta fase?
Nunca fiz grandes planos, sempre pensei a curto prazo. Dos 15 aos 20 saí de casa, vim viver para Lisboa e entrei nos Morangos com Açúcar, que foi assim uma experiência muito gira. Aos 20 anos, comecei a prestar mais atenção a esta área e a fazer outras coisas. Não tenho grandes metas, dou tempo para as coisas acontecerem. Dos 25 até agora, também aconteceu muita coisa. Foram uns anos assim porreiros para olhar à volta e perceber o que estou aqui a fazer. Já fiz muito mais do que esperava. Olho para trás e penso: ‘Tenho 29, sou um bebé, já fiz tanta coisa, já trabalhei com tantas pessoas diferentes’. Isso é giro.
O que é que ainda quer fazer?
Gostava muito de voltar a ter uma experiência como o “Cosmos”, de trabalhar com um realizador como aquele [Andrzej Żuławski], que puxasse por mim e que me levasse a sítios que nem eu sabia que podia chegar. Isso e ter uma casa de campo e aquela idade em que não devo nada a ninguém e posso dizer tudo aquilo que penso.
Vê-se a fazer outras coisas no cinema?
Acho que não tenho jeito nenhum para realizar, mas gostava de escrever, só não faço ideia quando.
É menos bicho do mato do que era há 10 anos?
Sou mais bicho do mato neste universo da exposição pública e menos bicho do mato a lidar com as pessoas. Era um bocadinho metida para dentro e estava sempre num cantinho até que, há uns bons anos, percebi que isso não era bom. Hoje, dou-me muito mais com as pessoas.
Há esferas que nunca quis misturar, a da exposição pública e a da vida pessoal. É importante que, neste meio, haja mais low profile?
Acho. Mas também acho que os atores que estão a começar agora vão ter dificuldades em contornar isso. Tive sorte, se calhar porque comecei antes do boom das redes sociais. Mesmo antes de ser atriz, nunca gostei que soubessem coisas sobre a minha vida, sempre fui muito reservada. Talvez até tenha sido por isso que, com 15 anos, quis fugir do Algarve, um meio mais pequeno. É um facto, tive muita sorte com os trabalhos que me foram aparecendo, mas não quero ser falada porque namoro com não sei quem e porque não sei quê. Quero dar uma entrevista com propósito, quero falar sobre o “Aparição”.
Pensar e agir assim acaba por ser mais dignificante para a própria profissão?
Acho que sim. Mas também percebo que estamos a entrar numa era em que é cada vez mais difícil. Tenho perfeita noção disso, mas enquanto atores, quanto mais souberem sobre nós, menos credibilidade vamos ter. Se souberem tudo sobre nós, é mais difícil sermos credíveis a fazer um certo papel. É importante guardar uma certa privacidade. Guardar mistério é sempre mais interessante para quem representa.