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Entrevista ao escritor e professor catedrático, Viet Thanh Nguyen. Vencedor do Prémio Pulitzer para Ficção, em 2017, com o seu romance O Simpatizante. 17 de Maio de 2023 FLAD (Fundação Luso-Americana - para o Desenvolvimento), Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Viet Thanh Nguyen ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção em 2016

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Viet Thanh Nguyen ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção em 2016

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Viet Thanh Nguyen: "Os atos de traição na arte podem sempre ser justificados se a arte for bela"

Ganhou o Pulitzer com o romance de estreia, uma abordagem à Guerra do Vietname inspirada em Lobo Antunes. Após 8 anos, vai lançar um livro de memórias. Entrevistámos o escritor em Lisboa.

Enquanto filho de refugiados vietnamitas nos Estados Unidos da América, Viet Thanh Nguyen sabia que tinha de abordar a Guerra do Vietname literariamente e que essa abordagem tinha de ser feita de forma diferente do habitual, de forma a integrar a experiência dos refugiados, geralmente ignorada. Foi assim que nasceu o espião comunista sem nome que protagoniza o seu primeiro romance, O Simpatizante, um dos grandes acontecimentos literários de 2015 nos Estados Unidos, premiado com o Prémio Pulitzer no ano seguinte. Ainda curioso com os destinos do “homem de duas caras”, Thanh Nguyen escreveu e publicou em 2021 uma sequela, O Comprometido. Pelo meio, publicou vários estudos sobre migração, racismo e colonialismo e uma coletânea de contos, Refugiados, onde tudo se cruza, incluindo o Vietname, país onde nasceu mas que deixou aos quatro anos com o final da guerra.

Uma ferida aberta, a Guerra do Vietname continua a “assombrar” os Estados Unidos politicamente, ao mesmo tempo que a sua memória cultural começa gradualmente a desaparecer com uma nova geração de norte-americanos que não teve qualquer contacto com a história do conflito. Também para as famílias vietnamitas nos Estados Unidos, como a de Thanh Nguyen, a guerra continua a ser uma ferida por sarar. O impacto da Guerra do Vietname na sua história familiar é um dos assuntos que o escritor aborda no seu livro de memórias, A Man of Two Faces: A Memoir, A History, A Memorial, que será publicado nos Estados Unidos em outubro.

Apesar de ter a data de lançamento marcada e a capa ter sido divulgada, A Man of Two Faces continua a ser uma questão com a qual o autor se debate. Em conversa com o Observador, Thanh Nguyen, que se deslocou a Portugal para participar nos encontros promovidos pela Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento (FLAD) em Lisboa, confessou que se sente dividido com a publicação, porque o livro é um ato de “traição” para com aqueles que lhe são próximos. “Mas acho que existe redenção se um livro de memórias for uma bonita obra de arte”, disse ao Observador. “É uma autojustificação, mas os atos de traição na arte podem sempre ser justificados se a arte for bela.”

Viet Thanh Nguyen publicou até ao momento três livros de ficção, editados em Portugal pela Elsinore: os romances "O Simpatizante" e "O Comprometido" e a coletânea de contos "Refugiados"

Disse em vários momentos, em entrevistas e também em ensaios publicados, que a Guerra do Vietname ainda assombra os Estados Unidos da América. Em que medida é que isso acontece?
De diferentes maneiras, uma delas é cultural. A Guerra do Vietname era lembrada por muitos americanos como uma guerra muito má, que criava divisões. Essa perceção da Guerra do Vietname, como uma guerra má, era partilhada globalmente, sobretudo devido à cultura popular americana, como os filmes, mas também o fotojornalismo. Tornou-se parte da consciência global. Isso foi provavelmente verdade durante 40 ou 50 anos, mas acho que essa memória cultural começou a desaparecer. A maioria dos meus alunos nasceu depois do 11 de Setembro. A maioria nunca viu um desses filmes americanos sobre a Guerra do Vietname. Para eles, até a memória cultural da guerra desapareceu. Mas acho que a guerra continua a assombrar os Estados Unidos politicamente, porque o governo americano e as Forças Armadas foram moldadas pelo fiasco no Vietname. Vejo uma ligação direta entre a Guerra do Vietname e as guerras no Iraque, Afeganistão e Ucrânia. Muitas estratégias políticas e militares americanas são influenciadas pelo que os americanos fizeram de errado na Guerra do Vietname. É um outro sentido de assombração — que a guerra é ainda uma preocupação para os Estados Unidos no que diz respeito à polícia militar.

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Qual é a perceção que os seus alunos têm da Guerra do Vietname?
Nas escolas secundárias americanas, os alunos estudam História americana até à Segunda Guerra Mundial porque foi uma boa guerra para os americanos. Depois disso, tudo o que diz respeito à guerra e à política internacional é muito mais complicado para os Estados Unidos, então os alunos americanos aprendem muito pouco sobre a Guerra da Coreia ou do Vietname no secundário. De maneira geral, a única coisa que os meus alunos sabem é que provavelmente foi uma guerra má, que perdemos. Não sabem detalhes, não sabem nada sobre os líderes, políticas ou alguma coisa do género. E, como referi, a maioria não viu qualquer filme, e certamente não leram livros sobre o Vietname, talvez com exceção de um, The Things They Carried, de Tim O’Brien. É um livro canónino que os alunos leem no secundário.

Referiu num texto que publicou em 2015 no The New York Times, por altura da publicação de O Simpatizante nos Estados Unidos, que a guerra nunca acabou para os vietnamitas. O que é que quis dizer com isso?
Para os vietnamitas que perderam, que tiveram de deixar o país e tornar-se refugiados, essa guerra nunca terminou, porque foram derrotados. Acho que essa geração — a geração dos meus pais, dos meus avós — carrega as memórias dessa guerra de uma maneira muito emocional — a guerra foi muito prejudicial de tantas maneiras –, e passaram alguns desses sentimentos para os filhos e netos. Por vezes essas memórias foram transmitidas de forma muito explícita, contando histórias, mas geralmente foram transmitidas através do silêncio. Os filhos sabiam que algo de mau tinha acontecido, mas não sabiam os detalhes. Acho que isso é também uma forma de assombração para a geração seguinte. Para os vietnamitas no Vietname, aqueles que ganharam a guerra, a guerra é história. Se formos ao Vietname e visitarmos os museus, vemos que a guerra está presente, mas a história que é contada é uma história de vitória. Isso significa que os vietnamitas dali podem deixar a guerra para trás se quiserem. Se somos o vencedor, a guerra significa muito menos.

"Quando escrevo sobre a Guerra do Vietname, escrevo de uma perspetiva muito pessoal e emocional, mas também de uma perspetiva muito política. Sou muito crítico dos Estados Unidos. Também sou muito crítico do Vietname. Isso não é uma coisa que um escritor deva fazer."
Viet Thanh Nguyen, escritor

O trauma é maior para os Estados Unidos?
É difícil de dizer, porque não se pode falar da guerra como um trauma no Vietname. Apenas se pode falar da guerra em público como uma vitória. A ideia de que a guerra foi traumática é mantida sobretudo de forma privada, dentro de casa, porque o governo não permite nenhuma narrativa diferente da história oficial de que a guerra foi um triunfo e os soldados eram nobres. É por isso que O Simpatizante não pode ser publicado no Vietname. Acabámos de filmar a série televisiva [produzida pela HBO e com estreia marcada para o próximo ano] e não podemos filmar no Vietname exatamente por causa disso, porque O Simpatizante é um romance que insiste que a guerra é complicada, que foi má de diferentes formas e que ambos os lados fizeram alguma coisa errada. Essa narrativa não é permitida no Vietname.

De certa forma, o que acontece com a gravação do filme que descreve no romance aconteceu durante a gravação da série.
Mais ou menos [risos].

Mas espero que tenham conseguido contratar atores vietnamitas.
90% dos atores são vietnamitas. Apenas dois atores principais não são vietnamitas.

Disse que muitos refugiados vietnamitas não são capazes de falar da sua experiência durante a guerra. Aconteceu o mesmo, por exemplo, com muitos sobreviventes do Holocausto.
Talvez todos os países tenham este tipo de guerra que causam divisão, porque foi feita alguma coisa errada nalgum lado ou dentro do próprio país, como acontece durante as guerras civis. Acho que é por isso que um dos romances mais importantes que li para O Simpatizante foi um romance português, Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes. Influenciou-me muito, primeiro no estilo e depois no sentimento. Muito do que estamos a falar está presente nesse romance. Não acho que os Estados Unidos, o Vietname ou a Alemanha sejam os únicos países com histórias que as pessoas têm dificuldade em enfrentar.

Entrevista ao escritor e professor catedrático, Viet Thanh Nguyen. Vencedor do Prémio Pulitzer para Ficção, em 2017, com o seu romance O Simpatizante. 17 de Maio de 2023 FLAD (Fundação Luso-Americana - para o Desenvolvimento), Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Viet Thanh Nguyen nasceu no Vietname, mas mudou-se para os Estados Unidos da América com a família quando tinha quatro anos. Além de escritor, é professor na University of Southern California

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Porque é que decidiu escrever sobre a Guerra do Vietname? Por ser ainda um assunto pendente nos Estados Unidos?
A Guerra do Vietname foi a coisa mais importante que aconteceu à minha família em termos políticos. Moldou a nossa vida. Transformou os meus pais em refugiados duas vezes, primeiro em 1954 e depois em 1975. Nasci no Vietname, mas vivo nos Estados Unidos por causa dessa guerra. Senti que tinha de lidar com a guerra enquanto escritor e enquanto indivíduo. Mas abordo a guerra de uma maneira diferente em relação a outros escritores. Nos Estados Unidos, nós, os refugiados vietnamitas, podemos falar sobre o passado, mas apenas da nossa experiência de refugiados e se agradecermos ao país por nos ter resgatado do comunismo. Em O Simpatizante, e em todo o meu trabalho, não faço isso. Trato a Guerra do Vietname como um evento único, mas como uma guerra numa longa história de conflitos nos Estados Unidos que remonta à fundação do país. A maioria dos americanos vê os Estados Unidos como o melhor país do mundo, construído sobre os valores da liberdade e da democracia, e existe um bocadinho de verdade disso, mas, ao mesmo tempo, os Estados Unidos nasceram da guerra. A maioria dos americanos não quer falar sobre isso, mas é sobre isso que quero falar. Quando escrevo sobre a Guerra do Vietname, escrevo de uma perspetiva muito pessoal e emocional, mas também de uma perspetiva muito política. Sou muito crítico dos Estados Unidos. Também sou muito crítico do Vietname. Isso não é uma coisa que um escritor deva fazer.

Como é que essas críticas são recebidas nos Estados Unidos?
Os Estados Unidos têm uma população com opiniões políticas diferentes. O Simpatizante gerou críticas de pessoas muito diferentes. Houve americanos que me escreveram a dizer que, se odiava tanto o país, devia voltar para o Vietname; houve vietnamitas na América, outros refugiados, que acharam que sou comunista porque o narrador do romance é comunista; e no Vietname, o governo pensa que sou anti-comunista pela forma como retratei o comunismo. Fui criticado de diferentes direções. Por outro lado, existe uma parte da população americana que está disposta a criticar o país e a reconhecer que houve falhas e contradições em relação a questões como o racismo, a guerra e a colonização. Isso cria uma abertura para a publicação de um romance como O Simpatizante.

Esses temas ocupam atualmente um lugar de destaque na discussão pública. Isso também ajudou a que O Simpatizante fosse bem recebido?
O país está obviamente ainda muito dividido. Tivemos o Presidente Obama e depois o Trump. Muitos americanos ficaram provavelmente chocados por estes dois presidentes. Uma parte do país não conseguiu perceber porque é que tivemos um Presidente negro e uma outra parte porque é que tivemos um Presidente como o Trump. Para mim, não foi uma surpresa, porque o país foi construído sobre uma contradição. Por um lado, temos a liberdade e a democracia. Claro que podemos ter um Presidente negro. Por outro, temos um país construído sobre o nacionalismo, supremacia branca e colonização. Por isso, claro que podemos ter um Presidente Trump, que personifica tudo isso. As presidências de Obama e Trump são duas faces da mesma contradição americana, em relação à qual ainda estamos divididos.

"Apesar de a guerra ter sido travada no Vietname, Laos e Camboja, e de ter matado pelo menos quatro milhões de sul-asiáticos, a maioria dos americanos não faz ideia que isso aconteceu. A experiência dos refugiados era apenas referida pelos próprios refugiados. No Vietname, não se pode falar disso. Era absolutamente crucial que este romance de guerra tivesse a perspetiva dos refugiados."
Viet Thanh Nguyen, escritor

Podia ter escolhido vários momentos para retratar em O Simpatizante, mas decidiu falar sobre a queda de Saigão e sobre o que se passou a seguir. Porquê?
Queria garantir que era um romance de guerra, mas também um romance sobre refugiados. Muita gente quando ouve a palavra “guerra” pensa em soldados e batalhas. Isso é tudo verdade, mas a guerra também provoca sempre refugiados e mata civis. É essa a minha experiência. Cresci numa comunidade de refugiados e, tanto civis como soldados, estavam traumatizados pela guerra de diferentes formas. Ao começar [a história] com a queda de Saigão, pude falar da guerra que levou a isso e dos refugiados que criou. Para mim, era absolutamente crucial, porque essa parte da experiência da guerra — os refugiados — é universal. Cada guerra que testemunhamos — a guerra na Ucrânia é um exemplo — provoca sempre refugiados, mata civis. Há sempre uma história que levou à guerra e uma história depois da guerra. Mesmo depois de o conflito na Ucrânia terminar, permanecerão muitos sentimentos amargos de ambos os lados, psicologicamente e culturalmente, para russos e ucranianos.

As pessoas estão mais focadas no aspeto militar da guerra do que nos seus efeitos colaterais?
Isso é verdade para os Estados Unidos. Digo num dos meus livros que “todas as guerras são travadas duas vezes, uma primeira vez no campo de batalha e uma segunda vez na memória”. Nos Estados Unidos, nos anos 70 a 90, era muito claro que a Guerra do Vietname ainda estava a ser travada na memória. Acho que o 11 de Setembro ajudou a pôr um ponto final nisso — os americanos começaram a pensar sobre novas guerras. A guerra que os americanos travaram na memória dizia apenas respeito à América. Apesar de a guerra ter sido travada no Vietname, Laos e Camboja, e de ter matado pelo menos quatro milhões de sul-asiáticos, a maioria dos americanos não faz ideia que isso aconteceu. Estão focados na guerra que envolveu os americanos e que foi travada entre americanos. A experiência dos refugiados do Vietname, Laos e Camboja era apenas referida pelos próprios refugiados. No Vietname, não se pode falar disso. Era absolutamente crucial que este romance de guerra tivesse a perspetiva dos refugiados.

A personagem principal de O Simpatizante e da sequela O Comprometido não é apenas um refugiado, mas um espião. É um homem com “duas faces”. Porquê este protagonista? Foi a maneira que encontrou de contar os dois lados da história?
Sim, queria contar os dois lados da história. O romance pretende ser uma crítica e uma sátira sobre poder, ideologia, hipocrisia e absurdidade, que existiu nos dois lados. Mas também queria que fosse um espião porque a condição do espião tem algumas implicações universais. Um espião tem de se esconder, tem de ter uma máscara; tem de se esconder dos outros, mas às vezes dele próprio. Muitos de nós fazem isso no dia-a-dia. Enquanto crescia, sentia-me um espião. Sentia que estava a espiar os americanos e também os vietnamitas, porque estava constantemente a mover-me entre mundos diferentes. A minha vida não é muito interessante, mas peguei nessas experiências e introduzi-as na persona do espião, tornando essa ideia de duas caras e duas mentes muito mais dramática.

Entrevista ao escritor e professor catedrático, Viet Thanh Nguyen. Vencedor do Prémio Pulitzer para Ficção, em 2017, com o seu romance O Simpatizante. 17 de Maio de 2023 FLAD (Fundação Luso-Americana - para o Desenvolvimento), Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O autor publicou o primeiro romance, "O Simpatizante", em 2015. O livro chegou a Portugal em janeiro de 2017, já depois de ter ganho o Pulitzer

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O espião não tem nome, tal como a maioria das personagens. Porquê?
Queria que a minha personagem fosse muito específica, mas ao mesmo tempo universal. Ele é muito específico, tem uma história muito específica. Ficamos a conhecê-la — a sua experiência na guerra, a sua infância e juventude. Mas queria que essa história também fosse universal, porque o dilema de estar preso entre dois lados, de nunca ser capaz de escolher e a hipocrisia de todos os poderosos, é universal. Queria que as pessoas se pudessem identificar com isso. Como no romance de Lobo Antunes. A personagem também não tem nome. Isso é um sinal de problema de identidade e de investigação sobre a própria identidade. Por outro lado, não queria que as personagens tivessem nomes porque os nomes vietnamitas são muito particulares. As pessoas que não são vietnamitas têm dificuldade em lembrar-se deles e queria evitar isso.

Como é que descobriu o romance de Lobo Antunes?
Tive sorte. Quando estava a escrever O Simpatizante saiu uma nova edição americana do romance e li sobre ele no jornal. Pensei que parecia muito interessante e que parecia relevante para o que estava a fazer. Comprei o livro imediatamente e foi muito fortuito, porque me disse muito. É um romance muito desafiante, porque é muito denso, mas está escrito como um poema. Quase todas as frases transmitem uma imagem e as imagens são brilhantes. Quando o estava a ler, estava constantemente surpreendido com a forma como Lobo Antunes conseguiu criar essas imagens e o ritmo é hipnotizante. Só conseguia ler algumas páginas por dia. É como beber um expresso, só podemos beber um bocadinho de cada vez. Mas fiquei tão entusiasmado com o romance que, a determinada altura, tive de parar para escrever o meu romance. Esse foi o livro que li constantemente enquanto escrevia O Simpatizante. Deu-me uma grande inspiração para o ritmo, a voz e as imagens. Foi uma experiência muito particular. Tentei lê-lo outra vez quando estava a escrever a sequela, mas o meu narrador tinha mudado, as circunstâncias tinham mudado. Não teve o mesmo impacto, mas foi muito importante tê-lo lido quando estava a escrever O Simpatizante.

Porque é que decidiu escrever uma sequela?
Era suposto O Simpatizante ser um romance único. Quando o terminei, pensei que ainda tinha curiosidade em relação ao narrador e ao que lhe tinha acontecido. A pergunta mais importante era: o que é que um revolucionário que acredita na revolução faz quando a revolução morre? Tinha de escrever uma sequela para descobrir. Ele teve de ir para França, porque o pai era francês, e teve de criticar os franceses. Acho que os franceses tiveram mais sorte no contexto do Vietname e da Indochina. Fizeram coisas terríveis, mas esqueceram-se disso.

"Acho que aquilo que nos aconteceu não é assim tão invulgar. Um dos objetivos do livro [de memórias] não é dizer que a minha vida ou a vida da minha mãe é fora do comum, mas que são vidas muito comuns. . O que é também muito comum é que muitos de nós não querem falar sobre esses assuntos. Muitos de nós não estamos prontos para confrontar o passado, as emoções."
Viet Thanh Nguyen, escritor

Graças aos Estados Unidos.
Sim, a América apareceu e também fez coisas horríveis, que registou em fotografias, filmes. As pessoas no mundo inteiro lembram-se disso. Os franceses não puderam fazer a mesma coisa, então recordam o seu tempo na Indochina de forma muito romantizada. Recordam a colonização francesa como tendo sido boa para os vietnamitas, laosianos e cambojanos. Os vietnamitas lembram-se dos franceses como tendo sido os autores de crimes horríveis. Mas as histórias dos franceses, assim como as dos americanos, têm impacto a nível global e as dos vietnamitas não têm. Com O Simpatizante, quis ofender os americanos e consegui fazê-lo com alguns americanos; com O Comprometido, queria ofender os franceses, mas têm um bom sentido de humor [risos]. Não parece que tenham ficado ofendidos com o romance.

Os seus romances têm por base uma profunda pesquisa sobre a Guerra do Vietname, não parte apenas da sua experiência pessoal. Foi fácil encontrar uma forma de fornecer toda a informação importante sem soar demasiado académico?
Acho que sim… O importante era criar um narrador para que tivesse uma razão para dizer as coisas que diz. Ele é muito inteligente. Estudou nos Estados Unidos e no Vietname, é bilingue, é um marxista traumatizado com os seus desejos pelo capitalismo e é também francês e vietnamita. Com esse tipo de personagem, quando ele fala pela sua própria voz, soa a ele próprio. Espero eu.

Disse que a sua vida não é muito interessante, mas escreveu um livro de memórias.
Foi muito difícil para mim escrever esse livro de memórias. Não o queria escrever. Combinei com o meu editor que ia escrever um livro de não-ficção. Escrevi muitos ensaios sobre política e racismo nos Estados Unidos, e concordei juntá-los e publicar um livro, mas, na verdade, não o consegui fazer. Comecei a contar uma história sobre a minha vida e a vida da minha família e como essas vidas se intersetaram com a história, política e racismo no Vietname e nos Estados Unidos. Ao escrever essa história, tive de me confrontar com o facto de, na minha família, terem acontecido coisas terríveis por causa da guerra, especificamente com a minha mãe. Comecei a escrever sobre ela quando estava na faculdade, sobre ter sido internada num hospital psiquiátrico quando estava na faculdade. Depois pus esse ensaio de lado e não olhei para ele durante 30 anos. Só voltei a olhar para ele por causa deste livro. Cheguei à conclusão que tinha suprimido tantas coisas sobre a minha mãe e a minha memória do que lhe aconteceu. O livro tornou-se numa investigação sobre como muitos de nós suprimem memórias e sentimentos para conseguirem sobreviver e seguir em frente. Quando digo que a minha vida não é muito interessante, é em parte por uma questão de humildade, mas é também um mecanismo de defesa, para não ter de olhar para estas situações emocionais horríveis que nos aconteceram. E continuo a achar que a minha vida não é muito interessante. Acho que aquilo que nos aconteceu não é assim tão invulgar. Um dos objetivos do livro não é dizer que a minha vida ou a vida da minha mãe é fora do comum, mas que são vidas muito comuns. O que é também muito comum é que muitos de nós não querem falar sobre esses assuntos. Muitos de nós não estamos prontos para confrontar o passado, as emoções. A banalidade da nossa dor é muito difícil de enfrentar para muitas pessoas.

Entrevista ao escritor e professor catedrático, Viet Thanh Nguyen. Vencedor do Prémio Pulitzer para Ficção, em 2017, com o seu romance O Simpatizante. 17 de Maio de 2023 FLAD (Fundação Luso-Americana - para o Desenvolvimento), Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Os dois romances de Viet Thanh Nguyen passam-se depois da queda de Saigão e da retirada das forças norte-americanas do Vietname

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Escrever esse livro ajudou-o a perceber melhor a sua história e a sentir-se melhor com ela?
Acho que agora percebo melhor a minha relação com a minha memória. A memória é muito enganadora. Mudamos as nossas lembranças para nos salvarmos ou para nos enganarmos por diferentes razões. Por exemplo, esse ensaio que escrevi na faculdade sobre a minha mãe. Ela tinha sido internada um ano antes, mas lembrava-me do internamento como tendo acontecido quando era pequeno, mesmo tendo escrito um ensaio sobre o facto de ter acontecido quando estava na faculdade. Consegui ainda assim enganar-me durante anos e anos. Pensei que tinha acontecido quando era pequeno também porque ver a minha mãe num hospital psiquiátrico assustou-me tanto que me fez sentir um rapazinho. Foi assim que escolhi lembrar-me do episódio para o resto da minha vida, até que encontrei o ensaio e vi o que tinha escrito. Tinha esquecido tudo o que tinha escrito sobre o hospital, como a minha mãe estava, o que pensei, o que disse. Felizmente tinha pus isso tudo por escrito. A minha mãe voltou a ser internada 20 anos depois e, nessa altura, era um adulto de 33 anos. Não escrevi nada. Por causa disso, não me lembro muito bem do que aconteceu. O livro tem a ver com a minha capacidade de me lembrar gradualmente do internamento da minha mãe e de ser capaz de escrever sobre ele com grande detalhe porque tinha o ensaio, mas também com a minha recusa em recordar o segundo internamento. Como confrontei a primeira vez, senti que não tinha de me lembrar da segunda. Era ainda demasiado assustador ver o que estava a acontecer à minha mãe. Se me sinto melhor? Sim e não. Sinto-me melhor com determinados aspetos, porque fui capaz de me confrontar e de memoriar a minha mãe e o meu pai, mas sinto-me dividido, porque o livro é uma traição à minha família e à minha mãe. Tenho a certeza que a minha mãe não quereria que escrevesse algo tão pessoal sobre o qual a maioria das pessoas não gostaria de falar. É um típico livro de memórias, no sentido em que muitos livros do género que envolvem outras pessoas envolvem também traição. Será que temos o direito de falar sobre outras pessoas e sobre os seus segredos?

Esse sentimento de traição… Parece que esteve sempre presente ao longo da sua vida.
Sim, acho que é um tema recorrente. A nível político e também histórico, o nosso país trai-nos sempre, porque todos os países são construídos com base em ideias maravilhosos que repetimos aos nossos filhos, aos nossos alunos, e, tanto quanto sei, todos traem esses ideais a determinada altura. Se tivermos azar, fazemos parte do país que foi traído por outro por alguma razão, acabamos na prisão e a nossa história é silenciada, somos exilados e acabamos por nos tornar refugiados. Mas as traições também são muito comuns nas famílias. Podem acontecer diferentes tipos de traição. Os escritores são muitas vezes traidores. Se o escritor está comprometido com a verdade e vê o seu país a comprometer os seus ideais, acho que tem a obrigação de escrever a verdade sobre essa traição, mas o país pode ver o escritor como um traidor por dizer coisas que a maioria das pessoas não queria que dissesse. Mas o escritor também é um potencial traidor da sua família, da sua comunidade, por revelar segredos familiares ou comunitários que as pessoas preferiam que não tivesse revelado. Muitos escritores encontram-se neste território, porque pensam que têm de escrever sobre coisas muito sérias e, infelizmente, traições e segredos são das coisas mais sérias a que um escritor consegue ter acesso.

"Os escritores são muitas vezes traidores. Se o escritor está comprometido com a verdade e vê o seu país a comprometer os seus ideais, acho que tem a obrigação de escrever a verdade sobre essa traição, mas o país pode ver o escritor como um traidor por dizer coisas que a maioria das pessoas não queria que dissesse. Mas o escritor também é um potencial traidor da sua família, da sua comunidade."
Viet Thanh Nguyen, escritor

Como é que um escritor lida com essa ideia de que estará sempre a trair alguém?
Acho que não há uma resposta fácil. Sinto-me muito dividido em relação a este livro de memórias que vai ser publicado [em outubro nos Estados Unidos].

Continua com dúvidas?
Tal como o Simpatizante, sou um homem de duas caras. O título deste livro é O Homem de Duas Caras. A única maneira de o escrever foi fingir que era o Simpatizante a escrever sobre mim. Criei uma personagem sobre a qual escrevi e agora a personagem escreveu sobre mim. Porque também sou homem de duas caras, não é surpreendente que esteja sempre em conflito. Estou dividido em relação ao livro de memórias, porque é um ato de traição. Tenho sorte de o meu irmão, que é sete anos mais velho do que eu e viu todas as coisas que vi, ter lido o livro e ter dito: “Esta é verdade, podes publicá-lo”. Mesmo assim, ainda me sinto dividido. Mas acho que existe redenção se um livro de memórias for uma bonita obra de arte. É uma autojustificação, mas os atos de traição na arte podem sempre ser justificados se a arte for bela.

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