Paris, Munique, Budapeste e Moscovo. Este foi o itinerário do chefe da diplomacia chinesa, Wang Yi, no seu périplo pela Europa. A última paragem foi a capital russa — o responsável do Partido Comunista Chinês encontrou-se, esta quarta-feira, com Vladimir Putin e com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. A agenda não foi escolhida ao acaso, acredita Una Bērziņa-Čerenkova. Ao Observador, a diretora do centro de Estudos Chineses na Universidade Stradiņš de Riga comenta que a data “coincidiu com o dia de comício de Putin” e também ocorreu “dois dias antes do aniversário do ataque russo à Ucrânia”.
“Certamente que é simbólico”, prossegue a especialista da Letónia, que destaca a parte visual do encontro entre os dois líderes. O chefe da diplomacia chinesa e o Presidente russo estiveram sentados frente a frente numa mesa pequena (muito menor do aquela em que foram recebidos Olaf Scholz, Emmanuel Macron ou António Guterres). O governo chinês deu igualmente grande destaque a uma fotografia de Wang Yi “a apertar a mão de Vladimir Putin”. “Estão a olhar-se olhos nos olhos”, nota Una Bērziņa-Čerenkova.
Linguagem visual à parte, este encontro ficou marcado pela alegada nova abordagem da China à guerra na Ucrânia. No último ano, Pequim tem adotado um posicionamento ambíguo e neutro relativamente ao conflito. Por um lado, continua a dar importância à aliança com a Rússia e a criticar a NATO; por outro, enviou assistência humanitária a Kiev, absteve-se nas condenações na Assembleia das Nações Unidas à invasão e terá recusado apoiar militarmente Moscovo. No entanto, isso mudou recentemente.
A mudança na atitude chinesa com um tratado de paz
Continuando sem dar uma resposta clara sobre que lado vai apoiar na guerra, a China está comprometida a “elaborar um plano de paz”, lembra, em declarações ao Observador, Elizabeth Wishnick, analista do Centro de Análises de Segurança Nacional dos EUA. Os detalhes ainda são escassos e Pequim, continua a especialista norte-americana, “ainda não fez nada publicamente para aplicar qualquer pressão sobre a Rússia, à exceção de algumas declarações vagas contra ameaças nucleares”.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia já foi informado desse plano. Num comunicado, a diplomacia de Moscovo deu conta de que os “aliados chineses partilharam” os seus “pensamentos sobre as causas profundas da crise ucraniana, bem como as suas abordagens para uma solução política”. Do outro lado do conflito, a Ucrânia indica que, para já, ainda não tem conhecimento de qualquer proposta de tratado de paz da China.
Por sua vez, o Presidente francês já terá sido informado do plano, apesar de nunca ter havido qualquer confirmação oficial. Numa visita a Paris na passada quinta-feira, Wang Yi garantiu que a China está disposta a “colaborar com a comunidade internacional, incluindo com França, para promover um acordo político e chegar a um cessar-fogo em breve”. O Palácio do Eliseu sinalizava o compromisso de Pequim para trabalhar para a “paz” à luz do “direito internacional”.
Após encontro em Paris, China diz estar disposta a colaborar para alcançar a “paz” na Ucrânia
Uma semana depois, Wang Yi assegurava a Vladimir Putin que a China manteria uma “posição justa e objetiva” e “desempenharia um papel construtivo” na “resolução política da crise” ucraniana. Em simultâneo, o chefe da diplomacia chinesa elogiava a “vontade da Rússia em resolver o assunto através do diálogo e da negociação” e garantia que as relações entre Moscovo e Pequim “resistiram aos testes da conjuntura internacional”, estando cada vez mais “maduras e estáveis”.
Para que serviu, afinal, a visita?
Nos encontros com Sergei Lavrov e Vladimir Putin, o chefe da diplomacia chinesa assegurou que queria alcançar a paz através de negociações, mas salientou por várias vezes que queria “reforçar e aprofundar as relações sino-russas”. Na opinião de Elizabeth Wishnick, esta tentativa de “parecer imparcial” por parte de Pequim “não é muito credível”.
As incongruências no discurso, assim como o alegado “esforço de paz relativamente à crise ucraniana”, significam, na ótica de Una Bērziņa-Čerenkova, um “apoio a Vladimir Putin” e não uma “abordagem neutral”. “A China apoia as narrativas que o domínio dos Estados Unidos e da NATO é tóxico para a segurança global”, aponta a especialista letã, discurso que encontra ecos na retórica do Presidente russo, que, falando à nação esta terça-feira, acusou Washington de querer “impor um totalitarismo neoliberal” e de ter “milhares de bases militares” em todo o mundo.
Mas esse apoio chinês a Vladimir Putin continua a manter-se discreto por razões estratégicas. Ao Observador, a especialista da Letónia afirma que a China não quer “ficar com as responsabilidades das ações russas” — quer, isso sim, evitar ser alvo de sanções por parte do Ocidente, algo que poderia acontecer caso declarasse o seu apoio irrestrito a Moscovo. É, por isso, uma posição de “neutralidade pró-russa”.
“A China providencia apoio retórico à Rússia e a visita de Wang Li foi planeada para realçar o suporte de Pequim sem haver um compromisso oficial de apoio militar”, sustenta Elizabeth Wishnick, que sugere que os dirigentes chineses têm ajudado Moscovo a contornar as sanções do Ocidente através de “atores não-estatais” como o grupo Wagner, ou “através de algumas empresas estatais”.
Chips, peças de caças e radares: China estará a fornecer equipamentos para ajudar a Rússia na guerra
Aliás, uma investigação do Wall Street Journal apurou, através da recolha de registos alfandegários, que empresas estatais chinesas terão enviado para a Rússia equipamentos como câmaras de infravermelhos, chips, peças de caças e radares — tecnologia de ponta que o Ocidente tem sancionado, para que Moscovo não continue a alimentar a sua máquina de guerra. Ao mesmo jornal, Liu Pengyu, porta-voz da embaixada chinesa em Washington, desmentiu as informações, reforçando que a investigação “não tem qualquer base factual” e é “puramente especulativa e deliberadamente sensacionalista”.
Uma maneira de “inverter” o discurso
A China parece querer continuar a adotar a “neutralidade pró-Rússia” — e este encontro mostra-o –, mas, na opinião de Una Bērziņa-Čerenkova, Pequim vai “inverter o discurso” e transparecer uma imagem positiva perante os parceiros do hemisfério sul (como a África do Sul e Brasil) e até perante a União Europeia. O objetivo é apresentar-se como uma “mediadora equidistante, que não favorece nenhum dos lados em contenda”.
Fazendo uma retrospetiva relativamente aos meses posteriores à invasão, a posição chinesa mudou — mas não a “180 graus”. No entender da diretora do centro de Estudos Chineses na Universidade Stradiņš de Riga, Pequim continua a apoiar o regime de Vladimir Putin e está a tentar escondê-lo. Mas isso “está a tornar-se cada vez mais difícil” — e é necessário agir, daí o acordo de paz.
“Está a ficar cada vez mais complicado para a China tentar manter uma posição neutral quando apoia a narrativa de Putin”, resume Una Bērziņa-Čerenkova, que garante que o “Ocidente certamente não acredita” nas supostas boas intenções chinesas. Relativamente aos países do hemisfério sul, “alguns ainda acreditam” na mediação chinesa — mas “mais por razões domésticas e históricas”.
O início de uma nova era entre Putin e Xi?
A Rússia tem elogiado por várias vezes as boas relações que mantém com a China. “Estão a desenvolver-se de uma forma segura e dinâmica”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros russo durante o encontro com o homólogo chinês desta quarta-feira, ressalvando que, apesar da “forte turbulência na cena internacional”, os dois países estão a mostrar unidade e “vontade de defender os interesses um do outro de acordo com o direito internacional e o papel central das Nações Unidas”.
À semelhança do que aconteceu há uns meses, Vladimir Putin voltou a convidar o seu homólogo chinês, Xi Jinping, para se deslocar a Moscovo, o que, a seu ver, dará um “impulso” às relações entre as duas potências. Antes da reunião com Wang Yi, o Presidente russo aproveitou a oportunidade para endereçar o convite e para “transmitir diretamente os melhores cumprimentos ao amigo, Presidente da República Popular da China, o camarada Xi Jinping”.
A maneira como foi endereçado o convite revela que o Kremlin quer ter Pequim a seu lado. No comunicado que resumiu a visita a Moscovo de Wang Yi, a China realçou que “está disposta” a trabalhar com a Rússia para “aprofundar a confiança mútua, fortalecer a coordenação estratégica e salvaguardar os legítimos interesses entre os dois países”, mantendo a relação de cariz “civilizacional” que une os dois países.
Ora, para Una Bērziņa-Čerenkova, esses dois fatores parecem demonstrar uma certa preponderância do “discurso político chinês” em detrimento do russo — afinal é a China que “está disposta” a trabalhar com a Rússia. Os dois aliados parecem, assim, já não estar na mesma posição. É, portanto, a “retórica de Xi Jinping que está a sair por cima”. “Se isso significa um domínio para além da retórica? O tempo o dirá”, conclui a especialista letã.