O vídeo, com quase 15 minutos de duração, mostra um homem a comentar excertos de um áudio de uma mulher, alegando serem prova de avisos que o próprio já estaria a fazer há algum tempo nas redes sociais. Nessa conversa, são várias as teorias de conspiração partilhadas: desde a vacinação forçada contra a Covid-19, as detenções de brasileiros em campos para esse efeito, passando por uma alegada epidemia de gripe das aves que estaria, supostamente, a chegar ao Brasil. Esta última questão chamou a atenção de vários utilizadores nas redes sociais, acabando por se tornar viral em plataformas como Facebook e TikTok.
No vídeo, o homem avança com a teoria de que o Presidente do Brasil, Lula da Silva, teria em mãos “dois decretos” assinados pelo líder do Fórum Económico Mundial, Klaus Schwab. Um desses documentos seria um “decreto de lei marcial” que, acrescenta na gravação, “não faria sentido” o Chefe de Estado implementar se estivesse “tudo às mil maravilhas” no país. Existiria ainda um “segundo decreto” que Lula da Silva detinha, relativo à “declaração de emergência sanitária” em todo o território brasileiro.
Na origem desses documentos, refere-se também na gravação, estaria um plano com vários passos, que culminaria com a implementação de uma vacina universal e obrigatória no Brasil. O primeiro passo, acrescenta, já teria sido dado, com o envio para “a costa de Bahia de Santos” de um navio chinês “carregado de aves infetadas” com uma nova estirpe da gripe das aves, que já teriam chegado a “mais de 15 estados” brasileiros. O homem alega ainda que a presidência brasileira quer, eventualmente, desligar a internet no país, de forma a infetar propositadamente a população com este vírus. Este plano de vários passos teria, supostamente, começado com o início da pandemia de Covid-19 e com as restrições sanitárias impostas na altura, e assumiria agora um maior relevo com a imposição de “obrigatoriedade [de vacinação] por força militar”. No vídeo é ainda referido que quem não cumprir as regras vai, por exemplo, ser “preso em campos de detenções” ou ter bens confiscados e contas bancárias “bloqueadas”.
Mas vamos por partes. Em primeiro lugar, é verdade que o Klaus Schwab, presidente e fundador do Fórum Económico Mundial, esteve recentemente no Brasil, para discursar no Fórum de Competitividade na capital Brasília. Durante essa visita, a 17 de maio deste ano, o economista alemão foi recebido no Palácio do Planalto pelo vice-Presidente brasileiro Geraldo Alckmin. O encontro foi, de resto, noticiado por vários meios de comunicação social, como a Agência Brasil. No entanto, seria impossível, de um ponto de vista jurídico, que Klaus Schwab tivesse deixado decretos assinados para Lula da Silva.
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De acordo com o artigo 84 da Constituição Federal de 1988, “decretar o estado de defesa e o estado de sítio” compete exclusivamente “ao Presidente da República“. Igualmente, os decretos no Brasil são atos administrativos da exclusiva competência dos chefes dos poderes executivos, ou seja, de Presidente, governadores e prefeitos. Seria, por isso, impossível Lula da Silva aplicar em território brasileiro um decreto assinado por terceiros.
Na Constituição brasileira não encontramos, igualmente, referência à lei marcial, uma figura jurídica que pode ser invocada por um Estado para agir perante uma ameaça excecional. Esse mecanismo existe em alguns países, como por exemplo a Rússia, mas não tem previsão legal no Brasil, ou até em Portugal. Como já referido, a lei brasileira prevê, sim, a declaração de estado de sítio — mecanismo que autoriza medidas como a “obrigação de residência em localidade determinada” ou a “suspensão da liberdade de reunião”, tratando-se do equivalente ao estado de emergência que pode ser aplicado em Portugal. Ou seja, em teoria, permitiria impor, por exemplo, um confinamento geral da população. No entanto, de acordo com o artigo 137 da Constituição, o estado de sítio só pode ser decretado pelo Chefe de Estado depois de “ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional” e após autorização do “Congresso Nacional”.
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A Constituição Federal de 1988 prevê, ainda, o estado de defesa, que pode igualmente ser decretado pelo Presidente da República após ouvir “o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional” e pedir autorização do Congresso Nacional. Ao que revela o artigo 136, o mecanismo pode ser usado para “preservar ou prontamente restabelecer (…) a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. O estado de defesa é, por isso, o que mais se parece assemelhar ao conceito de lei marcial. No entanto, como já foi referido, nenhum destes mecanismos pode ser aprovado sem luz verde do Congresso Nacional, o órgão constitucional responsável por elaborar e aprovar leis e fiscalizar o Estado brasileiro.
No vídeo é também mencionado que, atualmente, apenas um estado brasileiro não está sob estado de emergência devido a um surto de gripe aviária. É verdade que vários casos do vírus foram recentemente identificados no Brasil. Os últimos dados disponibilizados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (19 de julho de 2023) davam conta de 64 casos confirmados em sete Estados brasileiros — não 15, como alega a publicação. Não há também, de acordo com o Governo, nenhum registo de infeção em aves comercializadas para consumo, nem casos de infeção em seres humanos.
Finalmente, em relação ao facto de a China ter enviado para o estado da Bahia um “navio com milhares de aves contaminadas” que estariam a ser distribuídas por todo o país, não é possível encontrar qualquer notícia sobre esta alegação em órgãos de comunicação brasileiros credíveis.
Importa ainda referir que, ao longo dos quase 15 minutos de gravação, o autor do vídeo não refere uma única vez quem é a voz feminina que está a avançar com estes alegados factos, nem são apresentadas provas que sustentem a informação divulgada. Para além disso, na legenda que acompanha esta publicação o vídeo é atribuído a “Esdras Prado”. Uma simples pesquisa no motor de busca Google permite-nos concluir que se trata de um youtuber conhecido por disseminar informação falsa e teorias da conspiração nas redes sociais.
Conclusão
São várias as teorias defendidas na publicação, mas nenhuma é baseada em factos credíveis. Decretos que permitem impor um novo confinamento só podem ser assinados pelo Presidente do Brasil — não por terceiros, como o líder do Fórum Económico Mundial — e precisam de aprovação no Congresso. A alegação de que a China enviou um navio com aves contaminadas para o Brasil não é, igualmente, confirmada por nenhum órgão de comunicação credível.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.