Circula nas redes sociais uma publicação que alega que o antigo ministro da Saúde de Itália, Roberto Speranza, está “acusado de assassinato por incentivar” a vacinação contra a Covid-19 e por “esconder as mortes” de pessoas vacinadas. A mesma publicação alega ainda que a presidente da Comissão Europeia, o CEO da Pfizer e Bill Gates foram “denunciados” ao Tribunal Penal Internacional, na Haia, “por colocarem em risco a vida de 451 milhões de cidadãos”.

A publicação inclui ainda um conjunto de links para as supostas fontes de toda esta informação: o primeiro remete para um vídeo produzido pela página “reesereport.com”, da autoria do norte-americano Greg Reese, que já foi várias vezes denunciado como um prolífico autor de notícias falsas, especialmente sobre a pandemia da Covid-19; dois outros remetem para publicações relativamente obscuras que citam como fontes um jornal e um programa televisivo associados à ala populista conservadora da esfera política italiana (e cujo conteúdo já foi entretanto clarificado pelos principais jornais do país); o último remete para a página de uma suposta jornalista chamada Karina Michelin, cujos conteúdos já foram descredibilizados múltiplas vezes por diversos meios de comunicação que se dedicam à verificação de factos.

Contudo, trata-se de uma publicação falsa: as alegações que surgem no texto, todas baseadas em fontes sem credibilidade, estão distorcidas ao ponto de contarem uma história muito diferente da verdade.

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Vamos por partes.

Relativamente à primeira alegação — a de que o antigo ministro da Saúde de Itália, Roberto Speranza, está “acusado de assassinato por incentivar” a vacinação contra a Covid-19 e por “esconder as mortes” de pessoas vacinadas —, trata-se de uma ideia que tem vindo a ganhar grande destaque nos meios ultraconservadores norte-americanos nos últimos dias. O famoso teórico da conspiração Alex Jones, por exemplo, foi um dos que já partilharam o vídeo feito por Greg Reese.

A origem desta publicação, contudo, tem cerca de três semanas. Como explica o jornal italiano La Repubblica, a informação começou a circular originalmente através do jornal La Verità (conhecido por ser próximo de tendências populistas e conservadores) e do programa televisivo “Fuori dal coro”, apresentado por Mario Giordano, controverso apresentador que já esteve envolvido em polémicas relacionadas com discurso de ódio e racismo.

E onde está a verdade aqui? Efetivamente, explica ainda o La Repubblica, o antigo ministro da Saúde italiano, Roberto Speranza, e o antigo diretor da Agenzia Italiana del Farmaco (AIFA, equivalente ao Infarmed em Portugal), Nicola Magrini, foram formalmente registados como “investigados” no Ministério Público de Roma depois de terem sido apresentadas várias queixas-crime contra eles por sindicatos e por uma associação de pessoas que sofreram efeitos secundários da vacina contra o coronavírus.

Ainda segundo o mesmo jornal, as queixas foram encaminhadas para uma jurisdição especial do sistema judicial italiano responsável por analisar casos que envolvem membros do governo no exercício das suas funções. Contudo, o procurador responsável pelo caso decidiu desde o início que o Ministério Público não pretende prosseguir com a investigação, pelo que, na altura da notícia do La Repubblica (final de novembro), o caso estava apenas à espera de que o tribunal decidisse formalmente o seu arquivamento. A Rai, emissora pública italiana, confirmou essa mesma informação, noticiando que a queixa, apresentada em maio deste ano, estava à espera da formalização do arquivamento.

Ou seja: o ex-ministro da Saúde italiano foi investigado apenas no sentido em que qualquer pessoa que seja alvo de uma qualquer queixa-crime é formalmente considerada como estando a ser investigado pelas autoridades. Neste caso, o próprio Ministério Público determinou logo a sua intenção de não dar seguimento à investigação. É, portanto, abusivo afirmar que Roberto Speranza estava a ser investigado por homicídio — e simplesmente falso alegar que o antigo governante foi “acusado de assassinato”.

Ao mesmo tempo, importa também mencionar que em março deste ano o antigo primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte e Roberto Speranza tinham sido visados numa investigação do Ministério Público de Bérgamo, que estava a analisar a resposta do governo italiano no início da pandemia. Chegou a estar em cima da mesa a possibilidade de uma condenação por crimes de homicídio por negligência devido a estatísticas que apontavam para a possibilidade de 4 mil mortes poderem ter sido evitadas caso as medidas de confinamento tivessem sido decretadas mais cedo. Os governantes acabariam, contudo, por ser absolvidos.

A segunda alegação que surge na publicação é ainda mais obscura. De acordo com a publicação, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o CEO da Pfizer, Albert Bourla, o diretor a OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, e o empresário Bill Gates foram “denunciados no TI de Haia”, sendo “acusados” de “colocarem em risco a vida de 451 milhões de cidadãos”.

A fonte apresentada para esta alegação é a página de Karina Michelin, uma suposta jornalista brasileira que já tem um longo historial de disseminação de notícias falsas. Karina Michelin ganhou especial proeminência durante a pandemia de Covid-19 por difundir inúmeras informações falsas sobre a doença e a eficácia das medidas restritivas e das vacinas. Alguns exemplos de verificações de factos da imprensa brasileira podem ser lidos aqui, aqui, aqui e aqui. Em abril deste ano, o YouTube chegou mesmo a cancelar o canal que Karina Michelin usava para difundir as suas teorias.

No texto publicado no site de Karina Michelin é dito que foi apresentada junto do Tribunal Penal Internacional uma queixa-crime “contra os principais responsáveis pelas negociações de vendas entre a UE e a BioNTech/Pfizer”. O artigo usa várias marcas de linguagem muito usadas em múltiplos exemplos de desinformação sobre a pandemia: a “fraude gigantesca”, os dados “falsificados”, a população “enganada”, e por aí fora.

Supostamente, a queixa terá sido movida pela organização “United For Freedom”, que, segundo o seu site, se dedica à luta pelos direitos do consumidor, pelos direitos dos animais e pela conservação da natureza. Ainda assim, o site fornece muito pouca informação sobre a organização: a maioria das páginas estão em branco e todas as moradas indicadas são de apartados arrendados no Reino Unido, Alemanha e Polónia.

Além da página de Karina Michelin, só foi possível encontrar referências a esta queixa-crime na edição alemã do “Epoch Times”, um jornal de extrema-direita associado a múltiplas teorias da conspiração nos Estados Unidos (incluindo, por exemplo, as alegações — também elas já verificadas e consideradas falsas — de que teria havido fraude eleitoral nas eleições de 2020, de que Donald Trump saiu derrotado).

Em suma, toda a informação em torno desta queixa-crime no Tribunal Penal Internacional surge em páginas já historicamente associadas a notícias falsas e teorias da conspiração, que remetem para um ficheiro PDF com a queixa, em língua alemã, escrita pela não menos obscura organização “United for Freedom”.

Significa isto que a queixa é falsa? Não necessariamente: na verdade, ao abrigo do Estatuto de Roma, qualquer indivíduo, grupo ou organização pode apresentar uma queixa ao Tribunal Penal Internacional, que tem jurisdição sobre os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. É ao Tribunal Penal Internacional que cabe, depois, analisar se a queixa é admissível ou não — e se há razões para avançar com um processo.

O que é certo, sem dúvida, é que a eventual existência de uma queixa contra Ursula von der Leyen, Albert Bourla, Tedros Adhanom Ghebreyesus e Bill Gates não implica que estas figuras sejam culpadas de qualquer crime em relação à pandemia da Covid-19. Recorde-se, contudo, que Ursula von der Leyen esteve no meio de uma polémica durante o processo de vacinação contra a Covid-19 devido ao modo como negociou com a Pfizer a compra de vacinas para o espaço da União Europeia.

Conclusão

A principal alegação da publicação é manifestamente falsa: o ex-ministro da Saúde italiano não foi “acusado de assassinato” por incentivar a vacinação contra a Covid-19. Foi objeto de uma queixa e o Ministério Público já pediu o arquivamento do processo. Ao mesmo tempo, a segunda alegação da publicação é ainda mais obscura: circula em páginas já historicamente associadas à desinformação sobre a pandemia da Covid-19 a ideia de que várias personalidades, incluindo Ursula von der Leyen, tinham sido denunciados ao Tribunal Penal Internacional por colocar em risco milhões de pessoas com a vacina da Covid-19. A existência da queixa, por si só, não comprova nada: fazer uma queixa é um direito que assiste a qualquer cidadão, independentemente da sustentação que tenha para a apresentar.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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