A Venezuela atravessa um momento de particular tensão política e social. As últimas eleições presidenciais no país, realizadas a 28 de julho, garantiram, segundo as autoridades nacionais, a recondução de Nicolás Maduro. Mas os resultados estão a ser contestados, desde logo, pela oposição interna, mas também nas ruas do país. As manifestações que se seguiram às eleições já levaram a mais de 2.200 detidos e, pelo menos, 23 mortos.
Neste contexto, começaram a circular na última semana publicações com um excerto de um vídeo de cerca de 40 segundos que, alegadamente, traz a público “o horror da ditadura venezuelana”. As imagens mostram um grupo de cinco homens, todos em bicos de pés, amarrados pelas mãos a uma trave sobre as suas cabeças. Os homens estão de costas para a câmara e, de frente, pode ver-se que um outro homem, aparentemente armado, que lhes dirige algumas palavras.
“Bom, rapazes, sabem porque estão aqui?”, começa por perguntar, enquanto outras três pessoas assistem à cena junto à parede e à porta da sala. Sem respostas do grupo, o mesmo homem continua a falar para os prisioneiros: “Estão aqui por serem guarimberos [termo usado na Venezuela para identificar manifestantes anti-regime], por [serem] guerrilheiros, golpistas.” De seguida, assegura-lhes que, “se colaborarem, vai ficar tudo bem, tudo tranquilo” e que “não há necessidade de estarem tão amedrontados”.
As reações às imagens foram imediatas. “Isto é criminoso, miserável e deve ser rejeitado e denunciado por todos, para que a comunidade internacional saiba. @NicolasMaduro assassino!”, atiram os autores das publicações aqui em análise, todas com considerações muito semelhantes a esta.
Sem informações públicas fidedignas que atestassem a veracidade destas imagens — e perante a possibilidade de estarem a ser difundidas imagens concretas de atos de tortura e perseguição política na Venezuela de Maduro —, o Observador foi à procura da origem destas imagens, que nas publicações são visíveis a partir de um ecrã e, depois, gravadas, aparentemente, com a câmara de um telemóvel apontada a esse ecrã.
O primeiro passo foi fazer uma busca reversa de imagens, isto é, com recurso a ferramentas disponíveis online, o Observador tentou perceber quando é que aquele excerto começou a ser partilhado — e por quem, ou por que entidades. Nessa pesquisa, além de múltiplas publicações em redes sociais como o X (antigo Twitter), o Youtube, Instagram, e também em plataformas como o Reddit, chegamos a um artigo publicado no dia 5 de agosto no semanário uruguaio Crónicas do Leste com o título “Fiasco jornalístico imperdoável de Ignacio Álvarez no programa ‘Santo y Seña’”.
Nesse artigo, o autor (a peça está assinada pelo próprio órgão de comunicação social) faz referência à mais recente (à data) edição do programa do Canal 4, também uruguaio, e que no fundo é um espaço regular de comentário e análise da atualidade política na Venezuela. “Sob o pretexto de denunciar os ‘ultrajes’ que ocorrem na ‘ditadura chavista’, apresentaram uma peça que rapidamente se revelou um exemplo vergonhoso de negligência jornalística”, acrescenta o mesmo texto do Crónicas do Leste (o caso também foi abordado pela edição uruguaia do jornal El País).
No texto do semanário Crónicas do Leste, refere-se, a determinada altura, que aquelas imagens — que depois começaram a circular nas redes sociais — teriam, afinal, sido retiradas de um filme realizado por Diego Vicentini, e que está disponível na plataforma de streaming Netflix.
Numa busca por mais informações sobre o filme, rapidamente chegamos à página de “Simón” no IMDB, uma plataforma que agrega informações sobre uma vasta gama de conteúdos cinematográficos, séries e programas de televisão. A sinopse do filme, produzido no ano passado, refere que “Simón” conta a história de um “venezuelano combatente pela liberdade exilado em Miami”, nos Estados Unidos, que procura lidar com “não apenas o trauma, mas a profunda culpa por uma escolha que tem de fazer: ficar em Miami e começar uma vida nova ou regressar a casa e à luta perdida contra um regime tirânico”. A capa promocional refere que o filme é “baseado em eventos reais”.
Pesquisando imagens do próprio filme, encontramos no Youtube o trailer, publicado a 23 de maio deste ano. Pomos o vídeo a correr e, passados seis segundos, surge a imagem da suposta sala de tortura que já tínhamos visto nas publicações aqui em análise.
De volta à pesquisa sobre a origem destas imagens, encontramos também uma publicação no X do programa Santo y Seña, onde — acusava o Crónicas do Leste — o conteúdo tinha inicialmente sido difundido. Essa publicação, também de dia 5 de agosto, faz menção a uma “errata”: “Entre um conjunto de vídeos emitidos sobre os ultrajes cometidos pelo regime de Maduro, foi incluído este que, ainda que reflita exatamente o que ocorre na ditadura chavista, descobrimos ter sido extraído de um filme. Como devido, fazemos a clarificação.” Na mesma publicação surge o vídeo propagado entretanto nas redes sociais com a suposta cena de tortura dos cinco homens amarrados pelos pulsos a uma trave sob as suas cabeças.
Fe de erratas: Dentro del cúmulo de videos emitidos sobre los ultrajes cometidos por el régimen de Maduro, se coló éste que si bien refleja exactamente lo que ocurre bajo la dictadura chavista, descubrimos que fue extraído de una película.
Como corresponde hacemos la aclaración. pic.twitter.com/7aKLse11kE— Santo y Seña (@santotv4) August 5, 2024
Apesar de todo este contexto muito específico sobre um excerto que está a circular e que, como vimos, não ilustra nenhuma cena real de tortura praticada pelo regime de Nicolás Maduro, a verdade é que as denúncias de repressão política, violência sexual e, também, de tortura física e psicológica têm sido uma constante no país ao longo das últimas décadas.
Ainda esta semana, o Observador publicava um extenso artigo onde, entre outros pontos, relevava as conclusões da missão internacional independente da ONU na Venezuela, num relatório divulgado em setembro de 2022 e em que se apontava claramente aos “atos de tortura de extrema gavidade” e a “violações de direitos humanos” como sendo parte de um “plano desenhado pelas autoridades para reprimir os opositores ao governo” de Maduro.
Conclusão
A Venezuela de Maduro tem um historial de acusações, por entidades credíveis e creditadas, de práticas de “tortura” e repressão da oposição política do atual regime. Porém, e no que diz exclusivamente respeito a estas imagens que estão a circular nas redes sociais, elas não ilustram uma cena real de tortura ou repressão da máquina de Caracas. Trata-se de um excerto de um filme que, por sua vez, é apresentado como sendo “baseado em factos reais”.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ENGANADOR
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.