Haja bacalhau, haja rabanada, e que não acabe tudo à pancada |
Um dia, quando eu era pequena, não aguentei a expectativa e abri, um a um, todos os presentes de Natal que sabia serem para mim. Lembro-me de me levantar mais cedo, ou de aproveitar a distração na cozinha com a confeção das rabanadas, sentar-me em frente à árvore decorada, descolar devagarinho a fita-cola, verificar – com alegria ou nem tanto – o interior, e depois voltar laboriosamente a colar tudo outra vez. |
Quando chegou a hora oficial de abrir os presentes, a minha noite de Natal foi a menos excitante de sempre: não só tinha saído da equação o fator surpresa, como tinha entrado na equação o fator representação. De repente, tive de me transformar numa excelente atriz, abrindo cada presente com “ohs” e “uhs” de espanto e alegria que já não eram genuínos. Nunca mais o fiz. Ainda assim, foi uma belíssima dupla aprendizagem: por um lado fiquei a saber que gosto mais de surpresas do que imaginava, por outro, que não levava grande jeito para as artes do espetáculo.
De todo o modo, isto diz muito sobre a forma como as crianças viviam o Natal e o modo como o vivem hoje, no que aos presentes diz respeito. Bem sei, bem sei. Cheguei já àquela idade em que enaltecemos o “nosso tempo”, em detrimento deste que, sendo ainda “nosso” (porque ainda vivemos nele), tem diferenças substanciais relativamente ao passado. Já dei por mim a cair nessa esparrela algumas vezes, que diabo, parece que vem mesmo com a idade, sem apelo nem agravo. Aqui não se trata de enaltecer um e diabolizar outro. Mesmo. É apenas uma constatação. |
Numa família de classe média, quando eu era criança, um presente era mesmo um presente. Não havia dúvidas sobre o que oferecer, porque toda a gente sabia que aquela criança andava a suspirar meses ou um ano inteiro por uma ou outra coisa. Hoje, numa família de classe média, pergunta-se a um miúdo o que quer para o Natal e o mais certo é ouvir-se um “não sei”. Ou, se esse “não sei” já tiver, noutros anos, suscitado um discurso do tipo “pois, vocês têm tudo, nem sabem o que querem porque não querem nada!” (o típico sermão que equivale ao “no meu tempo”), os miúdos apressam-se e inventar à pressão um brinquedo qualquer que viram no anúncio que passou na televisão há cinco minutos, e que nem querem assim tanto, porque na verdade não querem nada assim tanto. Talvez esta fosse uma belíssima oportunidade para deixar cair o tema “presentes” no Natal e centrar a coisa na reunião familiar (ou, pelo menos, reduzir muito os excessos de ofertas a que eles, invariavelmente, não ligam nenhuma). |
Os meus natais eram, geralmente, com a minha mãe e os meus avós. Depois, ia lá ter o meu pai que, apesar de divorciado da minha mãe, tinha com ela uma relação cordial, creio que “para bem da filha”, no início, e depois, quando o tempo sarou as feridas, porque conseguiram que sobrasse uma forte amizade. Já o escrevi noutra newsletter: sempre se defenderam quando havia asneira comigo e com um deles, mesmo quando o outro era praticamente indefensável, e sei que quando um morrer, o outro terá um desgosto difícil de ultrapassar. |
Ainda assim, lembro-me que não foi só naquela noite em que já conhecia todos os presentes que tive de ser “atriz”. Na verdade, representei muitas vezes, quando abria os presentes. Não queria mostrar nem um milímetro a mais de entusiasmo pelo presente da mãe ou do pai, ainda que o de um fosse muito mais especial (ou desejado) do que o do outro. |
Os filhos de pais divorciados, mesmo os que vivem ou viveram um divórcio bastante saudável, sabem do que falo: queira-se ou não, há dois lados. E os dois lados, por mais que não se odeiem, acabam sempre a competir, ainda que inconscientemente, pelo melhor presente, pelo melhor momento proporcionado, numa espécie de “vê como eu faço isto bem, mesmo sem ti (ou sobretudo sem ti)”. E um filho nunca quer magoar o outro lado. De maneira que ensaiava os “ohs” e os “uhs” e tentava que a minha expressão nunca transparecesse a minha preferência. |
Agora que penso nisso, podia ter-me tornado diplomata, de tanto jogo de cintura feito desde tenra idade entre “países” opostos (ainda que não estivessem em guerra). Ou então jogadora de poker, mestra na arte do engodo facial. Caramba, tanta oportunidade desperdiçada! |
Quando a minha irmã nasceu, passámos muitos natais todos juntos: a minha mãe, o meu pai, a minha madrasta e a minha irmã, para espanto de quase todas as pessoas a quem contava quais os participantes da minha Consoada. E era bom, era um outro tipo de família, mas isso nunca me fez sentir que era menos família do que a dos outros. Pelo contrário: era mais família. E mais, desde que seja bom, pode mesmo ser ótimo. |
Entretanto, casei e tive a sorte de conseguirmos juntar os dois lados na noite de Natal: a minha família e a família do meu marido. Já fomos trinta, este ano seremos 24. Há sempre sensibilidades, um tio que não quer vir e é preciso insistir com ele até à exaustão (de novo a diplomacia), há o que pode beber um pouco mais do que a conta e é preciso estar de olho para ver se não se põe a dizer coisas que não deve, há os que são mais parecidos, e os que são mais diferentes, há que saber onde sentar cada pessoa na mesa, para que a coisa flua e não acabe a ser um campo de minas. |
Há famílias que são bombas-relógio e onde os Natais marcam a hora certa de pequenas (ou grandes) explosões. Há ressentimentos antigos, mágoas novas, há o não-dito que se engoliu uma vida inteira e que apodrece devagarinho, há muitas pessoas que partilham ADN mas, por vezes, pouco mais do que isso (ou nada). Uma grande amiga da minha mãe, com uma família complicada, dizia com graça que o Natal era uma época de “PÁS!” (no sentido onomatopeico de pancadaria – ainda que, no caso dela, fosse “apenas” verbal). |
A noite da Consoada vem, além do mais, no seguimento de dias de uma intensidade eletrizante. Falo por mim, mas sei que há muitos outros como eu – diz-se, de resto, que é uma característica lusa: a de deixar tudo para a última hora. Todos os anos penso que no ano seguinte serei uma pessoa diferente, mas já levo anos demais disto para acreditar que, um dia, serei de outra maneira. Todos os anos, começo a comprar os presentes no dia 23, quando não é mesmo tudo arrebanhado no dia 24. |
E se há anos em que o espírito natalício baixa em mim de uma maneira que tolero filas e apertos com um sorriso e desejos de festas felizes, outros há em que me apetece correr tudo à chapada, ou simplesmente virar as costas e dizer este ano não há presentes para ninguém, que o melhor presente é estar presente, e só de imaginar a cara dos miúdos ainda fico com mais vontade de o fazer, o que prova que este é um ano em que o espírito natalício definitivamente não me tomou. Teme-se o pior, esta noite (o melhor é começar a beber um bom vinho desde bem cedo). |
O Natal pode ser um tormento para quem tem de fingir que gosta de pessoas com quem teve quezílias intransponíveis. Ou de quem pura e simplesmente não gosta nem com molho de tomate. Mas também para aquelas famílias que acabaram de perder um dos seus membros queridos – aquele lugar vazio à mesa a dificultar a digestão do bacalhau. Ou para quem se separou há pouco tempo e, pela primeira vez, não vai passar a noite de Natal com os filhos. Ou para quem já tomou a decisão de se separar, mas está só à espera que passe, justamente, a época das festas. Ou para quem está só, rigorosamente só. Nada agudiza mais as dores do que uma noite em que todos os cristãos (e mesmo aqueles que, não sendo cristãos, acabaram por adotar o Natal como uma tradição familiar) proclamam aos sete ventos a sua felicidade doméstica, ainda que, muitas vezes, não seja tão feliz assim. |
As famílias são entidades fascinantes. Capazes do melhor e do pior. Quando há harmonia chega a ser comovente, esta noite de diversão, em que se fazem jogos, se canta ou toca ou conversa pela madrugada adentro. Quando há muitas tensões, a família é assim uma espécie de Hidra que, no Natal, pode encontrar o seu Hércules. Pelo sim pelo não, tentem não esmagar cabeças. Qualquer coisa, respirem, contem até dez, enfiem mais uma rabanada no bucho, e pensem que, não tarda, já passou tudo. E tenham a consciência de que não adianta muito estarem, dentro de dias, em pé em cima de uma cadeira a comer passas e a desejar um feliz 2023, se tiverem dado cabo do Natal. |
Vale a pena… |
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O lobo não gosta nada do Natal. Na verdade, as festividades até lhe dão dores de cabeça. Quando chega o dia 24 de dezembro, os amigos decidem que está na hora de mostrar ao lobo o que tem esta festa de tão especial.
(ed. Zero a Oito) |
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É o mais premiado mágico português e volta a surpreender com um espetáculo onde prova que a ilusão converte o impossível em possível. Luís de matos trazalguns convidados: dos EUA, Dan Sperry, o anti-mágico, chocante e excêntrico. De Espanha, Javier Botía, campeão mundial de mentalismo. De França, Norbert Ferré, duplo campeão mundial de magia (pela Federação Internacional das Sociedades Mágicas, fundada em 1943). Da Coreia do Sul, Yu Hojin, o mágico que se tornou um símbolo nacional no seu país.
O espectáculo sobe ao palco do Teatro Tivoli, em Lisboa, de 25 a 30 de Dezembro, e depois segue para Coimbra, Faro e Porto. |
Assistir ao bailado clássico O Lago dos Cisnes, no Altice Fórum Braga – Grande auditório. |
Um dos clássicos imperdíveis.
No dia 27 de Dezembro, às 21h00. E atenção que as 1ª e 2ª plateias já estão esgotadas. Já só há lugar no balcão. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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