Portugal já teve mais glamour. Durante a 2ª Guerra Mundial, espiões dos Aliados e do Eixo cruzavam-se nos hotéis de luxo do Estoril, à procura de informações que pudessem desequilibrar o conflito. 80 anos depois, temos de nos contentar com um amanuense russo infiltrado nos serviços camarários de Setúbal, a copiar moradas de refugiados ucranianos. Ian Fleming inspirou-se num desses agentes que operavam em Lisboa na década de 40 para criar James Bond. Se fosse hoje, em vez de Casino Royale, teria escrito Gabinete de Apoio Técnico à Recepção de Refugiados Royale, a monótona história de Igor Khashin, um agente secreto com licença para digitalizar, arquivar e e-mailar.

Khashin é um russo com ligações ao Kremlin que a Câmara Municipal de Setúbal emprega para receber ucranianos fugidos à guerra. À primeira vista, soa bem. Como grande parte dos ucranianos fala russo, é simpático poderem lidar com alguém que os compreende. A questão é que as dificuldades de compreensão entre um refugiado ucraniano e um aliado de Putin não estão só ao nível da língua.

Igor Khashin – Então o que a traz à pérola do Sado?

Refugiada – Estou a fugir à guerra.

Igor Khashin – Guerra? Qual guerra?

Refugiada – A guerra na Ucrânia.

Igor Khashin – A Ucrânia está em guerra? Ó diabo, então ninguém me avisa? Com quem? Aposto que é com os traiçoeiros romenos!

Refugiada – Não, não é com os romenos.

Igor Khashin – Os polacos? São mesmo torpes, os polacos!

Refugiada – Também não é com os polacos.

Igor Khashin – Os moldavos? Pequenos, porém ignóbeis!

Refugiada – Não. Não é com os moldavos. Estamos em guerra com os russos.

Igor Khashin – Com os russos? Esquisito. Sou russo e não ouvi falar disso. Tem certeza?

Refugiada – Estamos em guerra há dois meses, desde que vocês invadiram o nosso país.

Igor Khashin – Invasão? Nada disso. Deve estar a referir-se à operação especial para limpar o vosso país de nazis. Se calhar, também é nazi. Tem ar disso.

Refugiada – Não sou nazi. E é uma guerra.

Igor Khashin – Uma operação militar especial.

Refugiada – Tenho a certeza de que é guerra.

Igor Khashin – E eu tenho a certeza de que é uma operação militar especial.

Refugiada – Olhe que parece mesmo uma guerra.

Igor Khashin – Pois, mas é uma operação militar especial.

Refugiada – É guerra!

Igor Khashin – É operação militar especial!

Refugiada – Guerra!

Igor Khashin – Operação militar especial!

Como é óbvio, a recomendação que Khashin acaba por dar à CM de Setúbal é que acolha esta refugiada, mas num hospício. Se vê uma realidade que Khashin não reconhece, é porque sofre de transtorno paranóide, com forte mania da perseguição, e o seu lugar é num manicómio. De nazis.

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Como cidadão português, fiquei chocado. Como cidadão português que lida amiúde com burocracia autárquica, fiquei curioso. Este funcionário russo parece bastante competente a solicitar documentação e a recolher informações. É um tipo de eficiência que não é habitual encontrar numa câmara municipal. Será que, em vez de receber refugiados ucranianos, não se pode pôr este russo no departamento de urbanismo, para acelerar processos de licenciamento? Aposto que a licença chega mais depressa se o pedido for para fechar uma marquisevski. A ocupar-se de obras dessas, o russo passava a ser o espião que veio acabar com o frio.

Entretanto, o PCP dá mostras de uma desorientação pouco comum. A passagem de informações sensíveis à Rússia é feita através de uma Câmara Municipal comunista, mas o partido não vê mal nisso. A toupeira é o russo, mas os comunistas é que estão ceguetas.

Toda a vida ouvi gabar a coluna dos comunistas. Pelos vistos, não é a vertebral, é a 5ª. Não duvido que os comunistas sejam gente que honra a palavra dada. Agora, é preciso ver se a palavra dada terá sido “spasiba, tovarish!