O comentariado sobre a prática e sobre o legado político de Pedro Passos Coelho foi sempre – sempre – feito em torno de citações inexistentes ou, no jargão jornalístisco, em off. «Íamos além da troika» nos impostos, quando o próprio só queria reformar mais do que o acordado no memorando; «o Diabo vinha aí», quando não há uma única (uma única, por amor de Deus) declaração de Passos que contenha a diabólica profecia. Alguém disse que alguém disse que ele disse. E, claro, alguém escreveu. E, igualmente claro, o comentariado adorou. Afinal, beneficiava a narrativa. E, para tantos, convinha que Passos fosse isso: a “austeridade” como ideologia, o “pessimismo” como mania.
Hoje, quase uma década depois da quase bancarrota, o costume prevalece. Ana Sá Lopes, a mulher com quem mais aprendi jornalismo, assinou esta semana um editorial no Público cujo primeiro parágrafo não deixa margem para dúvidas. “Quem tinha saudades dos discursos de Pedro Passos Coelho consolou-se um bocadinho com o presidente do PS, Carlos César”. Novamente invocando o amor do Senhor, inquiro: alguém que respeite Passos seria alguma vez consolado por essa indignidade andante chamada Carlos César? Sinceramente, creio que não. Mas adiante. Reservemo-nos à política.
Para Ana Sá Lopes, quando César diz que “se fôssemos atrás do estilo aventura, de que tudo é fácil, que tudo é barato, voltávamos ao tempo da bancarrota”, tal representa, escreve a jornalista, “o discurso do ‘vem aí o diabo'”. E Sá Lopes vai mais longe: “a expressão ‘contas certas’ que foi o mantra da campanha [do PS] para as europeias já tinha tido essa inspiração”. Presuma-se, portanto, uma inspiração passista.
É, então, aqui que estamos, meu caro leitor. Quatro anos depois depois da aclamada ‘geringonça’ (quem não se lembra de uma das Mortáguas prometer que “a austeridade acabou”?), temos, nossa Senhora, um PS e um seu governo vítimas de passismo. Como foi possível?
Um executivo apoiado no parlamento por PCP e Bloco de Esquerda defende e aprova orçamentos de défice zero? De tratados cumpridores de metas de Bruxelas? De austeridade? Parece que sim. E, pelos vistos, só se notou quatro (quatro, Jesus Cristo, quatro) orçamentos depois. Passos, por sua vez, já o apontava no verão de 2017 e com uma pergunta bem direta: “Toda a conversa que faziam contra nós, dizendo que vivíamos obcecados pelo défice e pela dívida, onde foi ela?”. Ei-la, meu caro leitor, ei-la.
O meu ponto – e é nele que divirjo, e sempre divergi, de Ana Sá Lopes – é que isto não tem nada que ver com “passismo“. A falta de dinheiro não mudou com a ideologia ou com os governos ou com os partidos. A falta de dinheiro continua cá e é por isso que os discursos sobre “contas certas” também continuam cá. O problema de admitir isso é que toda a porcaria que foi escrita contra Passos – o “neoliberalismo”, o “austeritarismo”, a política “de direita”, o “ajoelhar” a Merkel – era, no fim do dia, apenas lidar com a realidade. Não havia, e continua a não haver, dinheiro para tudo. Mas a realidade, entre 2011 e 2015, não dava grandes artigos de opinião.
A Passos, que não é pessoa de estados de alma, estas comparações e ironias serão seguramente indiferentes. Àqueles que estiveram com ele, os poucos que até nos momentos mais difíceis acreditaram, deverá dar, como provocava o tal editorial, algum consolo: ver a praça reconhecer o lado certo da história – a realidade – e que eles, os poucos, estiveram ao lado do homem certo dessa história. Passos.