Se tivessem de dar nome ao mundo que separa a retórica da realidade, chamar-lhe-iam Portugal. Há dois anos, no dia 25 de Abril de 2018, entrevistei Yannis Varoufakis na Avenida da Liberdade. Enquanto Mariana Mortágua gritava a um megafone contra o Orçamento do Estado que o seu partido aprovara no parlamento, o ex-ministro das Finanças grego dizia-me que a ‘geringonça’ não “era uma solução”, mas “uma pequena melhoria”. Sobre o governo minoritário de António Costa, Varoufakis considerava que este tinha estabilizado “a situação portuguesa, ao não introduzir nova austeridade”, mas que não chegava: “não é suficiente porque aceitaram todas as medidas de austeridade do anterior governo [PSD/CDS]”.

Na minha jovial ingenuidade, julguei que havia descoberto a pólvora. A grande referência político-mediática da primavera europeia – que nunca se concretizou para lá de manifestações, editoriais de revista e cachecóis da Burberry – estava ali, em plena Lisboa, a afirmar que a ‘geringonça’ não havia revertido a política da troika e que não passava de uma “pequena” alteração na nossa circunstância. Quanto a Mário Centeno, que já era o ministro mais popular do executivo, Varoufakis acusava-o de “trair o eleitorado que votou nele”.

Lembro-me como se fosse ontem, e a verdade é que não foi assim há tanto tempo. Escusado será dizer que as declarações de Yannis Varoufakis passaram algo despercebidas na nossa praça, apesar de terem sido capa de jornal. O modo como o lustro dos nossos oráculos sobressai ou desvanece consoante as conveniências do Partido Socialista era – e é – impressionante. No caso de Varoufakis, depois do apoio de Costa ao Syriza aquando da sua eleição, foi mais do que isso: foi chocante. O que contava era que Mariana pudesse continuar a gritar naquele megafone – coisa que, de facto, se verificou.

Nos últimos quatro anos, a política portuguesa foi feita deste engodo. Aqueles que berraram contra os “falcões de Bruxelas” tornaram-se “falcões de Bruxelas”, até presidindo ao Eurogrupo. Aqueles que iam renegociar a dívida e apostar no consumo interno acabaram a gabar-se de exportações e metas do défice. Aqueles que proclamavam convictas tiradas revolucionárias converteram-se em prospectores de investimento estrangeiro e privado. Chamaram-lhe “rigor financeiro”, “contenção orçamental” e “contas certas”, quando aquilo que tiveram – e mantiveram – foi austeridade. Repito: austeridade. E uma austeridade com maior carga fiscal, menor investimento público e mais greves do que toda a governação de Pedro Passos Coelho.

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A austeridade não vai voltar, agora que enfrentamos o dobro da recessão, por uma razão simples: nunca foi embora. É ver a diferença entre os gastos dos países do norte e do sul da Europa na resposta ao coronavírus, os gastos do Estado português em saúde por percentagem do PIB (maiores durante a troika que durante a geringonça) ou a pressa do Bloco de Esquerda e do PCP em desmentir o primeiro-ministro e as “vacas gordas” que não existiram. Eles têm razão – as vacas não engordaram milagrosamente por serem governadas pelo PS –, mesmo que ambos tenham patrocinado essa mentira enquanto lhes conveio.

O triste espetáculo a que a imprensa nacional se prestou no último mês fez o seu melhor para cobrir a farsa. Durante duas semanas, múltiplos jornalistas inquiriram junto do atual governo se “vai haver austeridade” – “vamos ter austeridade?”, “vem aí austeridade?” – como se ela fosse uma escolha de quem governa ou existisse a mágica opção de crescer dinheiro nas árvores quando ele acaba. A questão correta não é se vai ou não haver austeridade, é que austeridade vamos ter.

A ver se nos entendemos: Sócrates, nos PEC’s, fez austeridade; Passos, sob resgate, fez austeridade; Costa, com a ‘geringonça’, fez austeridade; Costa, com a maior queda do PIB em 40 anos, fará austeridade; e Rio, se alguma vez for primeiro-ministro, fará austeridade. Não é uma intenção faltosa; é a consequência de uma falta. Não tem a ver com governos, partidos ou ideologias; tem a ver com não termos dinheiro. Quando ele acaba ou escasseia, aumentam-se impostos, corta-se, cativa-se, reduz-se despesa. Não é Hayek, não é Keynes, não é neoliberalismo, não é a União Europeia: é a realidade.

Haver uma série de governantes suficientemente irresponsáveis para insistir que não haverá austeridade não é surpreendente. É o seu papel, e dificilmente largarão a propaganda que ajudou a legitimar a solução de governo que durou de 2015 a 2019. Para que a ‘geringonça’ representasse uma alternativa, a austeridade tinha de ter sido uma escolha da direita, uma opção ideológica e castigadora dos portugueses. O problema do PS com a crise económica que aí vem é esse: como é que explicamos que a austeridade é necessária se passámos os últimos dez anos a dizer que era culpa da direita?

Costa, até agora, foi “habilidoso” na sua gestão política porque é fácil ser habilidoso em tempos de bonança. Mas nenhuma narrativa tem vida eterna, muito menos perante uma crise. Meia década após chegar ao poder, o primeiro-ministro corre contra um vento antes soprado por si próprio. Já não poderá procurar desculpas no passado porque, hoje, o passado é ele.

 

P.S. – Esta semana, António Costa foi ao parlamento recuar na ambiguidade com que havia tratado a eventual aplicação de medidas de austeridade no pós-pandemia, afirmando taxativamente que esta não ocorreria. Pensei em 2008. Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, o seu antecessor admitiu a um amigo que “se ele falhar, o que vier a seguir não será bonito”. Bush não se enganou. Obama prometeu que ia mudar a América e, quando não conseguiu, a América quis ser mudada na mesma – mas por Trump. A ‘geringonça’, como sabemos, prometeu-nos um país sem austeridade. Quando não conseguir entregá-lo, quem nos diz que os eleitores não pedirão esse país a outra gente? Na política, todas as falsas expectativas geram coligações de frustrados. Portugal não é uma exceção. Vamos descer à terra ou não?