Pediram-me para falar em novas desigualdades, mas as desigualdades de que irei falar não são necessariamente novas embora os efeitos se tenham avolumado ao ponto de não as conseguirmos ignorar mais. Começo pela desigualdade territorial, que vem descrita no programa desta conferência como sendo entre litoral e interior. É verdade que entre litoral e interior existem grandes diferenças, nomeadamente ao nível das infraestruturas, mas não é verdade que as desigualdades territoriais são apenas entre litoral e interior. Seria bom se fossem. Seria sinal de que a maioria da população não sofreria com essa desigualdade. Seria sinal de que a desigualdade era uma obra de um acaso natural, de uma proximidade ao oceano e não uma desigualdade construída artificialmente por opções políticas como realmente é. Infelizmente a desigualdade territorial não é apenas entre Litoral e Interior. A verdadeira diferença é entre Lisboa e o resto do País. Segundo o PORDATA, o salário médio em Lisboa é 1552 euros, em Coimbra é 1072 em Bragança é 922. A diferença entre Lisboa e Coimbra é 3 vezes maior do que entre Coimbra e Bragança. As desigualdades, especialmente as económicas, definem-se entre Lisboa e o resto do país, com o Porto algures numa situação intermédia.

Entretemo-nos muitos a apontar os casos de nepotismo na política, mas todos sabemos aqui, olhando para os apelidos de quem está em altos cargos de direcção nas grandes empresas e nos grupos de comunicação social que não é só na política.

E não vale a pena iludirmo-nos: não é uma desigualdade espontânea resultante de forças de mercado ou factores naturais. Não é, como noutros países, resultante de termos na capital um qualquer cluster sectorial de nível mundial, como o cluster financeiro em Londres ou tecnológico em Dublin. É uma escolha política. Portugal é um dos países mais centralistas da União Europeia, é um dos países em que mais despesa pública se concentra na capital. Há uma opção política clara de concentrar o poder político em Lisboa, de concentrar os negócios do estado na capital. Tendo o estado um peso tão grande na economia, esta concentração arrasta inevitavelmente o poder económico, e ambos arrastam o poder mediático. O centralismo garante que o poder no país está concentrado num pequeno círculo de pessoas distante do escrutínio da maioria, facilitando redes de nepotismo e corrupção. A concentração de poder num espaço geográfico tão exíguo permite que os círculos de poder político, empresarial e mediático se intersectem tanto que chegam a ser indistintos. Nós entretemo-nos muitos a apontar os casos de nepotismo na política, mas todos sabemos aqui, olhando para os apelidos de quem está em altos cargos de direcção nas grandes empresas e nos grupos de comunicação social que não é só na política. Cada vez mais a elite é um círculo fechado controlado por meia dúzia de famílias e dois ou três grupos mais ou menos secretos. A esmagadora maioria das pessoas neste país, por muito bons que sejam, não podem aspirar a chegar a altos cargos na política ou nas empresas. Esta ausência de meritocracia tem implicações graves na forma como o país e as grandes empresas são geridas. Para termos os melhores no topo, o acesso a esses lugares não pode estar restrito a quem tem o apelido certo ou pertence a uma qualquer organização secreta.

Para além de aprofundar desigualdades, a concentração de poder faz com que se desperdice muito capital humano. Há um eixo de Braga a Coimbra onde se concentra muita da criação de conhecimento do país e, acima de tudo, onde ainda se vai concentrando uma boa parte da população jovem. Mas nesse eixo, onde se formam os jovens da geração mais bem preparada de sempre escasseiam as oportunidades de crescimento profissional. Para muitos, como foi o meu caso há 13 anos, quando chega a altura de dar o passo seguinte na carreira sendo obrigados a sair da sua região, não faz grande diferença ir para Lisboa ou para o estrangeiro. Inevitavelmente, muitos preferem ir para o estrangeiro. Depois de saírem, para muitos, como eu, nunca chega a haver um verdadeiro regresso. Por isso, acabamos enquanto país por perder talento, também por termos um país centralista. E a direita cala-se sobre este assunto porque tem medo que falar de centralismo leve à regionalização e porque não tem uma alternativa decente para combater o centralismo.

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Associado à desigualdade territorial vem a desigualdade no acesso aos serviços públicos. O acesso a cuidados de saúde e educação deveria ser um factor de equalização de oportunidades à partida, mas a estrutura burocrática de fornecimento desses serviços faz com que em muitos casos acabe como exponenciador dessas desigualdades. A obsessão em misturar a garantia de acesso com a necessidade de ser o estado a fornecer esses serviços faz com que abdiquemos de algo tão essencial como a liberdade de escolha. Faz com que abdiquemos dos efeitos positivos da concorrência na qualidade do serviço. Faz com que deitemos fora todo o potencial da iniciativa privada precisamente no tipo de serviços mais essencial, onde ela seria mais precisa.

Governantes miseráveis que colocam os seus filhos em escolas privadas, retiraram àquelas crianças a melhor opção de mobilidade social que tinham. E a direita cala-se, assustada porque lhes abanam a acusação de quererem sustentar negócios privados com dinheiros públicos. Pois eu digo, então sustente-se.

Eu cresci no concelho de Espinho e quando acabei a escola primária fui obrigado a ir para uma escola básica onde se concentravam todos os alunos das zonas mais pobres e periféricas do concelho. Era um edifício antigo quase sem espaços exteriores, onde chovia, havia casos de violência diários e, consequentemente, muitos professores desmotivados. Ali a 500 metros uma outra escola recebia os alunos das zonas mais ricas e centrais do concelho, incluindo os filhos dos professores da minha escola. Era uma escola também pública, mas com espaços amplos, campos de futebol, professores mais motivados e um luxo que a minha escola não tinha: uma cantina. Todos os dias os alunos da minha escola faziam um sprint à hora de almoço para usarem a cantina da escola pública dos meninos ricos. Quando a cantina fechava os funcionários dessa escola faziam uma ronda para garantir que nós não aproveitávamos a ida à cantina para ficar por ali a usurpar o espaço público de uma escola que não era a nossa. Isto é um sintoma de um sistema doente, onde a qualidade do serviço público depende da zona onde cada um nasce. Da minha turma de vinte e tal alunos, pouco mais de metade fizeram o 12º ano e 6 chegaram à universidade. Seis foi um recorde para uma escola onde o normal nessa altura era não chegar nenhum. Nunca saberemos o que teria acontecido aos outros 20 se lhes tivessem dado as mesmas condições que aos alunos que tiveram a sorte de nascer noutra zona do concelho. Não sei, mas tenho um bom indicador. Ali a poucos quilómetros havia uma escola que recebia alunos com origens sociais parecidas. Era o colégio de Lamas que recebia filhos de operários da cortiça numas instalações fantásticas e com um projecto educativo de respeito. Naquela zona havia um pequeno vislumbre de liberdade de escolha e, sem surpresas, muitos preferiam ir para aquela escola privada que prestava um serviço público melhor do que as escolas estatais. Sem surpresa, muitos mais conseguiam chegar longe e entrar na universidade. Entretanto o colégio de Lamas deixou, por uma opção política deliberada, de ser uma opção para os alunos daquela zona. Os alunos que iriam para lá inundaram a escola estatal daquela área, têm uma educação de segunda numa escola sem espaço para eles. Apercebendo-se dessa situação e sem um pingo de vergonha na cara tivemos dirigentes do Bloco de Esquerda a exigir a construção de uma nova escola para resolver o problema que tinham causado ao impedir o acesso a uma escola que já existe apenas por ser privada. Governantes miseráveis que colocam os seus filhos em escolas privadas, retiraram àquelas crianças a melhor opção de mobilidade social que tinham. E a direita cala-se, assustada porque lhes abanam a acusação de quererem sustentar negócios privados com dinheiros públicos. Pois eu digo, então sustente-se. Porque se uma escola privada presta melhor serviço do que uma estatal ao mesmo custo para o contribuinte então deve ser sustentada.

Eu cresci a ouvir que quem não rouba nem herda vive na merda e recusei-me a acreditar até me aperceber que aquilo não só é verdade como é propositado, porque demasiadas decisões políticas são tomadas por quem roubou ou herdou e por isso despreza o valor do trabalho.

Mesmo quem consegue passar estes obstáculos, quem consegue, apesar da região onde nasceu, apesar das suas origens sociais, quem ainda assim aspirar a ter uma carreira profissional que lhe permita subir na vida, chega ao mercado de trabalho encontra logo um obstáculo final: um sistema fiscal punitivo para os rendimentos do trabalho. Para quem vem das classes mais baixas, sem capital nem um círculo social que lhe dê um impulso, só há uma forma de subir na vida: através dos rendimentos do seu trabalho. Mas se alguém estudar e trabalhar no duro para conseguir ganhar um pouco mais é logo confrontado com um sistema fiscal punitivo a impedi-lo de subir na vida. Quando saí da universidade fui ganhar no meu primeiro emprego, em termos brutos, mais do que ganhavam os meus dois pais juntos. Tinha estudado 17 anos, 4 dos quais a trabalhar em part-time, tinha acabado entre os melhores alunos do meu curso, trabalhava 80 horas por semana, incluindo fins-de-semana. Fiz tudo para merecer a mobilidade social, mas o estado português achava que não o merecia, que aquilo que ganhava não era meu. Tinha que entregar mais de metade do que gastavam comigo ao estado. Era a forma de o Estado me dizer que todo aquele esforço me poderia valer um pequeno salto, mas não estava autorizado a dar um salto demasiado grande. Uma sociedade que aspira dar oportunidades de mobilidade social não pode taxar o trabalho da forma que o faz. Eu cresci a ouvir que quem não rouba nem herda vive na merda e recusei-me a acreditar até me aperceber que aquilo não só é verdade como é propositado, porque demasiadas decisões políticas são tomadas por quem roubou ou herdou e por isso despreza o valor do trabalho.

Tudo isto concorre para o mesmo, para o nosso atraso. Mais 5 anos e podemos ser o país mais pobre da Zona Euro. Daqui a 10 ou 15 anos poderemos ser o país mais pobre não só da Zona Euro como da União Europeia. Estamos num país centralista, com elevada carga fiscal onde redes de compadrio e nepotismo se substitutem aos mecanismos de concorrência e mercado que deveriam guiar uma economia desenvolvida.

O modelo socialista e centralista falhou na promoção da mobilidade social. Temos um país onde cada vez mais nascer no sítio certo, na família certa e no bairro certo é essencial para determinar o futuro de cada um.

À direita o que desperta paixões hoje em dia é a conversa de salão de festas sobre a defesa dos valores e o futuro da civilização ocidental. O que excita a direita dos salões de festas é uma missão divina de defesa dos “valores da sociedade ocidental” mesmo que cada vez disfarcem pior o seu apego por quem tem discursos autoritários e intolerantes.

Mas a área não socialista não tem feito muito melhor. Para muitos daqueles que hoje falam em nome da direita, a mobilidade social importa pouco. Como a política é feita por aqueles que já estão no topo da hierarquia social, a mobilidade social não é um tema que desperte paixões. À direita o que desperta paixões hoje em dia é a conversa de salão de festas sobre a defesa dos valores e o futuro da civilização ocidental. O que excita a direita dos salões de festas é uma missão divina de defesa dos “valores da sociedade ocidental” mesmo que cada vez disfarcem pior o seu apego por quem tem discursos autoritários e intolerantes, opostos aos que sempre foram os valores da sociedade ocidental. Respondem ao perigoso identitarismo das minorias à esquerda com o ainda mais perigoso identitarismo da maioria. Respondem ao ridículo do politicamente correcto com um ainda mais ridículo politicamente javardo. Excitam-se todos nas redes sociais quando um grupo de ciganos ou de imigrante é acusado de um crime qualquer, mas ficam caladinhos quando o seu clube ou um escritório de advogados é suspeito de montar uma rede de corrupção e lavagem de dinheiro. Aproveitam qualquer desculpa para fazer discursos inflamados contra os grupos mais pobres e excluídos da sociedade, satisfazem-se na sua covardia de bater nos mais fracos socorrendo-se do argumento indigente de que é isso que chateia a esquerda. Perante um problema grave de mobilidade social e estagnação, tudo o que a direita parece ter para oferecer é o mesmo que a esquerda, uma guerra identitária: atirar pobres de um grupo contra pobres de outro grupo, esperando que enquanto se entretêm a lutar uns com os outros não tentem perceber onde está a verdadeira causa da sua pobreza.

Se a direita não serve para oferecer uma política alternativa de mobilidade social e de esperança, então, meus amigos, podem fazer as tertúlias que entenderem, organizar os movimentos que mais gostarem, as sessões de masturbação intelectual colectiva que vos derem mais prazer, se a direita não conseguir oferecer uma alternativa política de mobilidade social e coesão territorial, então, meus amigos, a direita não servirá para nada. Até pode eventualmente obter um bom resultado eleitoral e o poder, mas não servirá para nada. Não servirá para nada porque, ao contrário do que parecem pensar muitos dos que menosprezam os problemas de mobilidade social, estes problemas afectam todos, mesmo os que estão no topo da hierarquia. A busca da felicidade é o grande motor da economia e quando esse motor deixa de funcionar, todos ficam a perder. Como diz a música, quando o Homem sonha, o mundo pula e avança. Mas o contrário também é verdade: quando as pessoas deixam de poder sonhar, o país estagna e atrasa-se. E nós já estamos estagnados há 20 anos.

Intervenção proferida na II Convenção do MEL – Movimento Europa e Liberdade