Imagine-se que os telefonemas de um governante são escutados pela polícia a pretexto de suspeitas de tráfico de influências e corrupção. Imagine-se que, num dos telefonemas, o escutado conversa com outro governante e este, sobre quem não recaem quaisquer suspeitas na história em apreço, confessa ao colega um projecto em vias de conclusão para rebentar um infantário à bomba, a título de alerta para as alterações climáticas e o “genocídio” em Gaza. Imagine-se que a gravação é rápida e ilicitamente entregue aos media, que a difundem. Imagine-se o que aconteceria, logo de seguida, num país normal. E imagine-se o que aconteceria em Portugal.

Num país normal, além da extraordinária repercussão na opinião pública, as forças de segurança tratariam imediatamente de deter o sujeito em questão, obrigá-lo a denunciar possíveis cúmplices e, claro, anular o plano, impedir o atentado e salvar as criancinhas. Em Portugal, semelhantes minudências passariam para segundo plano: a reacção prioritária seria encher os estúdios televisivos e as colunas dos jornais de comentadores com ambições políticas e políticos a fingir de comentadores, todos indignadíssimos com a fuga do segredo de justiça, o comportamento inaceitável do Ministério Público e a necessidade de, acima de tudo, resgatar o bom nome do candidato a bombista, entretanto arrastado pela lama. No que dependesse desses vultos da ética, as criancinhas não teriam hipótese.

O exemplo é caricatural e grotesco? É. Gosto de caricaturas grotescas, inclusive caricaturas grotescas de “pessoas sérias”, que andam por aí de dedinho em riste a condenar a “descredibilização da classe política” e o “ataque cerrado” à “confiança nas instituições”. Note-se que a “confiança nas instituições” não é minada porque uma casta sem escrúpulos coloca o poder ao serviço dos seus excelsos interesses. Não, senhor. A “confiança nas instituições” só corre riscos se as trafulhices são divulgadas. A “ética” de que a casta fala não se aplica aos actos, e sim à ocultação, ou à revelação, dos ditos. Parece Kant, mas é “cant”, a palavra inglesa que significa o recurso insincero a sentimentos virtuosos, ou a pura hipocrisia. A palavra aplica-se com frequência ao linguajar do submundo.

Se quiserem, substituam o ataque ao infantário por um ataque mais meigo e plausível. Ao erário público, por exemplo. Imagine-se então que o dr. Costa era escutado a informar o ministro Galamba do despedimento à bruta e por “justa causa” da presidente da TAP, de modo a poupar ao governo as maçadas subsequentes à indemnização da famosa engenheira. Imagine-se os milhões que a senhora francesa reclama ao Estado (seis). Imagine-se os milhões antes aprovados por WhatsApp (meio). Imagine-se os milhares de milhões assim pulverizados nos divertimentos com a “companhia de bandeira” (três ou quatro). Para os porta-vozes da casta, perdão, os comentadores isentos da esquerda à “direita” (risos), as escutas deveriam ter sido destruídas, dado que, esclarecem, não aludem ao processo investigado e não contêm “qualquer relevância criminal”. Pois não. Desviar dinheiro dos contribuintes para obter benefícios partidários não é sequer um pequeno delito: é um direito da casta, legitimado pela jurisprudência, quiçá o usucapião.

Francisco Mendes da Silva, funcionário da casta e rapaz simpático, apareceu-me no Twitter a chamar ao episódio “um sintoma de uma cultura insuportavelmente anti-democrática”. Tendo a concordar. O que nos distingue é ele achar que o problema está na Justiça, que verte para o exterior, cito, “conversas políticas”, e eu achar que o problema está nos políticos, que confundem conspirações ilícitas com diálogos triviais, privacidade com imunidade, política com impunidade. E democracia com privilégio. Sem se rir, o Francisco queixa-se de que a Justiça é “insindicável” – e não, ele não deseja, ou pelo menos não diz desejar, que a Justiça seja “sindicável” pela restante parelha de poderes. O que ele deseja é que o jornalismo escrutine a Justiça como, deduz-se, escrutina a política. Escrutinar a política? Em Portugal? O Francisco tem graça. Se lhe coubesse decidir o caso Watergate, que saiu barato por comparação com a TAP, o Francisco fechava o Washington Post, lançava o Garganta Funda nas masmorras e atribuía uma comenda a Nixon.

Aliás, também é engraçado reparar que a aversão do Francisco e dos seus parceiros de ofício à “excessiva” independência judicial termina quando o alvo das investigações e dos eventuais abusos é o cidadão “comum” ou, vá lá, um político que a ortodoxia repute de “extremista”. Por alguma razão que me escapa e que com certeza é de uma imaculada nobreza, essa rapaziada apenas defende pro bono os membros da casta. E acrescente-se que a defesa tem resultado: apesar das tenebrosas perseguições a cargo de juízes ressentidos e “insindicáveis”, a casta continua aí, resistente e heróica, a sofrer martírios enquanto espalha rigor, honestidade e valores democráticos com abundância. Imagine-se o que aconteceria se os juízes tivessem trela. Imagine-se o leite e o mel da democracia a transbordar. Imagine-se a Venezuela.

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