Durante anos, mantive-me firme na minha convicção que os portugueses são mais parecidos com os outros povos do mundo, nomeadamente com os outros europeus, do que por aí se diz. É uma convicção, no fundo, tranquilizante. Pelo menos, os nossos defeitos aparecem sob uma luz menos cruel se se aparentam aos dos franceses ou italianos. E as nossas qualidades revelam um fundo civilizacional comum. Podemos estar na cauda da Europa, mas, como a Europa não é uma lagartixa, não nos arriscamos a que ela se solte se tal parecer necessário à sua sobrevivência. Conforta saber isso. Mas, às vezes, convém pensar contra nós mesmos e contra as nossas convicções. E se houver diferenças que nos singularizem de modo particularmente saliente, ao ponto de revelarem um contraste qualquer que assinale uma espécie de incompatibilidade final? Se a cauda for mesmo amovível de forma indolor para o resto do corpo? Não é inútil, quanto mais não seja como mero exercício, visitar estes negros pensamentos, se possível com a ajuda de exemplos concretos, convenientemente distintos entre si.

Primeiro exemplo: Marcelo Costa Rio. Não é preciso ser um subtil analista político para nos darmos conta que somos governados por uma misteriosa entidade que dá pelo nome de Marcelo Costa Rio. É indiscutivelmente uma originalidade, já que em qualquer outra parte do mundo tal entidade seria impossível e em seu lugar existiriam três entidades distintas e perfeitamente autónomas, mantendo entre si uma exterioridade que as individualizaria irredutivelmente. Aqui não. Sem entrar nas elevadas controvérsias teológicas do Concílio de Niceia, apresentam uma perfeita identidade que desafia o entendimento. Pensam em comum e agem em comum, como se de uma única substância se tratasse. Não há Marcelo, Costa e Rio. Há Marcelo Costa Rio. Uma parte dos portugueses acredita na Santíssima Trindade, mas vê-la assim no dia-a-dia, lidando como uma só pessoa com os diários problemas da nação, é caso para grande estupefacção. O pasmo e o assombro tomam conta de nós. E entorpecem-nos.  Marcelo Costa Rio decide tudo, desde a nomeação da Procuradora-Geral da República à escolha do Presidente do Tribunal de Contas. Ao que se ouve dizer, negar a nova Trindade é pouco ético e antipatriótico. O credo da República resume-se num só artigo: eu acredito em Marcelo Costa Rio. Os poucos bandos de heréticos que ainda sobrevivem, os actuais discípulos do bispo Ário, são impiedosamente perseguidos. O dogma exige unanimidade. Só uma pergunta: o que é que vêm fazer aqui as eleições?

Segundo exemplo: o regador regado. A primeira curta-metragem inteiramente ficcional da história do cinema, foi realizada em 1895 por Louis Lumière e tem por título O Regador Regado, L’arroseur arrosé. Conta, em menos de um minuto, a história de um jardineiro que, enquanto rega o jardim, fica surpreendido pela súbita falta de água a sair da mangueira. A coisa explica-se pelo facto de um miúdo, pregando-lhe uma partida, pisar deliberadamente a mangueira, impedindo a água de circular. E quando o jardineiro aproxima a boca da mangueira da cara, para ver se há algum problema, o miúdo tira o pé, libertando a circulação da água, e um jato forte bate em cheio na cara do jardineiro. Lembrei-me desta história no outro dia a ver na TVI José Alberto Carvalho a comentar detalhadamente a saída de Donald Trump do hospital onde estivera internado. Alberto Gonçalves já comentou o caso na Rádio Observador, mas permito-me voltar à carga, porque raras vezes assisti a um espectáculo tão delirante na televisão, e Deus sabe como ela abunda em delírios sortidos. Mesmo para os altos padrões de José Alberto Carvalho, e eles são mesmo muito altos, o feito foi prodigioso. Não é que o homem passa um tempo infinito numa interpretação semiótica da maneira como Trump desce umas escadas, apoiando-se num corrimão? Em tudo – no modo como ele dá umas banais e quase imperceptíveis pancadinhas no corrimão, por exemplo – ele vê sinais do horrível carácter de Trump, num exercício de delírio interpretativo sem igual. Para se ter uma ideia da coisa, basta dizer que nem Luís Costa Ribas seria capaz de chegar a tais patamares. Como é óbvio, quem acabou encharcado de ridículo foi o próprio José Alberto Carvalho. A diferença para com o filme de Louis Lumière é que foi ele mesmo, e nenhum miúdo brincalhão, a pisar a mangueira. Pisou voluntariamente a mangueira, dirigiu-a à cara, levantou o pé e, zás, o jato de água soltou-se muito lampeirinho. Não imagino em nenhuma televisão inglesa, francesa, italiana ou espanhola um exemplo equivalente de tal semiótica cabalística. Estamos já muito longe da banal má-fé. É loucura pura e simples. Loucura mesmo.

Terceiro exemplo: três anos para garantir o futuro. Com a aproximação da vinda dos dinheiros da Europa, e no seguimento de uma conversa que vem de longe, voltou a falar-se muito de corrupção. E, claro, logo apareceu quem minimizasse o problema, como a (simpática, de resto) comissária europeia Elisa Ferreira. Receio que a doutrina que ela defende esbarre com uma tendência forte em Portugal: a admiração genuína e pouco disfarçada pelos espertos que são capazes de vigarizar o próximo sem serem por isso castigados. Basta pensar no que se ouvia anos atrás sobre, por exemplo, José Sócrates. Em 1841, um jornalista e poeta escocês, Charles Mackay, publicou um clássico menor sobre as grandes ilusões colectivas que em certas alturas tomam conta dos povos, das vigarices financeiras à caça às bruxas: Memoirs of Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds (um título que inspirou um livro recente de Douglas Murray). O livro interessa sobretudo hoje em dia aos economistas, que aproveitam muitas das ideias de Mackay, mas interessa igualmente qualquer pessoa que sinta curiosidade pela facilidade de acreditar dos seres humanos e proporciona uma leitura fascinante. Um dos capítulos é dedicado à admiração pelos grandes salteadores, algo de comum em Inglaterra, de Robin Hood a Dick Turpin e para além dele. Em Portugal, tirando Zé do Telhado, não me lembro de mais nenhuma figura dessa equívoca estirpe que tenha granjeado uma tão ilustre reputação. Mas os vigaristas, sim. Há algo em nós que os venera, mesmo que à superfície provoquem indignação. Por isso, e por aquilo que se lê ou vê diariamente, eu tenderia a duvidar do optimismo de Elisa Ferreira. A apetência pelo dinheirinho é grande e, se se dispões de meios legais para nos protegermos dos eventuais castigos às malfeitorias, ela tem a trela longa. A coisa vem de há muito e foi teorizada por Caio Verres, um governador da Sicília atacado por Cícero em tribunal em 70 a.C. Os governadores romanos das províncias não eram pagos, mas tinham nelas um poder praticamente absoluto, o que originava normalmente corrupção em grande escala. Verres terá declarado que um homem precisava de três anos no seu posto de governador: o primeiro para garantir uma fortuna para a vida; o segundo para juntar dinheiro para pagar aos melhores advogados de defesa; e o terceiro para amealhar o necessário para subornar o juiz e os jurados, com vista a escapar à justiça. A doutrina de Verres parece muito actual, pelo que se vai sabendo.

A Europa não é sem dúvida uma lagartixa, e Portugal, mesmo na cauda, não se arrisca excessivamente a ser separada do resto do corpo para a sobrevivência deste. Mas há tantas coisas esquisitas por estas bandas que, em dias mais sombrios, uma pessoa apanha-se a pensar: que Deus me perdoe, mas não será que merecia?

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