Longe vai o tempo em que a China era um mero mercado low cost para a produção competitiva de exportações. Desde então, veio a tornar-se num dos motores económicos do planeta, em contínua expansão comercial e infraestrutural. Porém, após ter crescido através de globalização e mercados interdependentes, a China está agora a reorientar a sua economia para a criação de auto-suficiência económica. Em essência, o regime chinês pretende limitar a dependência de importações e reforçar capacidades domésticas e, dessa forma, aumentar a resiliência da economia chinesa. Assim, Pequim já veio dizer que a China tem de ser auto-suficiente em energia, minérios e produtos agrícolas, com o Presidente chinês Xi Jinping a afirmar que há que “fortificar o sistema nacional de reserva de materiais estratégicos”, de modo a garantir o funcionamento da economia “em momentos críticos”. Da mesma forma, Xi terá dito quea comida do povo chinês deve ser produzida por, e permanecer, nas mãos dos chineses”, no que é um reflexo do interesse aumentado de Pequim em segurança alimentar e fortalecimento agroindustrial.

Porém, auto-suficiência não significa necessariamente isolamento económico. Assim, a reorientação chinesa para auto-suficiência passa pela implementação da estratégia de ‘dupla circulação’, que, enquanto visa a expansão da economia doméstica, almeja também a continuidade das exportações, sob a premissa de que a resultante sinergia exponenciará o vigor económico chinês. De especial importância para Pequim, a criação de auto-suficiência na produção de bens de alta tecnologia – como seja através do programa Made in China 2025, que visa a concretização de 70% de auto-suficiência em indústrias high tech até 2025. A auto-suficiência tecnológica chinesa passará por suprir lacunas de know how para com empresas ocidentais, pelo que, paradoxalmente (e como apontado pela Bloomberg), implicará maior colaboração comercial e tecnológica com as mesmas. Isto é algo que parece ser avançado pelo programa para um ‘mercado doméstico unificado’, que, entre outros, pretende criar um ambiente de mercado mais apelativo para empresas estrangeiras.

Porém, a retenção de empresas estrangeiras também pode vir a passar por meios mais coercivos. Como explicado por Zoe Liu, ligado ao Council on Foreign Relations, nos EUA, a China já criou um quadro legal doméstico pelo qual tais empresas podem vir a ser forçadas “a escolher entre o mercado chinês e o mercado ocidental”, ou ainda penalizadas por “cooperação com ações externas vistas como ameaçadoras”. No seu artigo, Zoe Liu menciona ainda que Pequim tem tentado consolidar o yuan de modo a limitar as vulnerabilidades da China no seio do sistema internacional do dólar. Com efeito, Pequim tem vindo a apostar consideravelmente na projeção internacional do yuan e está a desenvolver a sua própria alternativa ao Swift, na forma do CIPS.

As políticas de auto-suficiência de Pequim tenderão a criar resiliência face à possibilidade de sanções, tal como tenderão a fortalecer a posição da China como potência económica e geopolítica.

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Porém, talvez seja também de nota que a demanda chinesa por auto-suficiência está a acontecer sobre o pano de fundo de uma postura estratégica continuamente mais assertiva e imperial. Isto passa por repressão interna aumentada, tipificada pela disciplinação de Hong Kong e pelo genocídio cultural dos Uighur em Xinjiang. Porém, também passa por esforços ativos para reorientar o sistema internacional numa direção sinocêntrica e autoritária e, ainda, pela intensificação de disputas territoriais com estados vizinhos, tal como pela escalada das provocações a Taiwan, que está sempre sob a ameaça de reunificação forçada. Tudo isto é consubstanciado pela expansão rápida das capacidades militares chinesas, recentemente caracterizada como a maior e mais ambiciosa” desde a “II Guerra Mundial”. Com efeito, está-se aqui perante a China que a NATO veio responsabilizar pela criação de “desafios sistémicos” à segurança euro-atlântica (pontos 13, 14, 18 e 43 deste documento).

A China também tem vindo a estreitar laços com a Rússia desde o início da agressão à Ucrânia. Assim, tem expandido as suas importações de energia russa, tem intensificado elos comerciais e infraestruturais com o país vizinho e já veio declarar que pretende cooperar com a Rússia em energia, finança, C&T e no setor técnico-militar. A 15 de Junho, Xi falou com Putin para notar que a China quer aprofundar o vínculo entre os dois países, com Putin, por seu lado, a dizer que a Rússia apoia a Iniciativa de Segurança Global (ISG), recentemente proposta pela China. A ISG visa a criação de uma arquitetura alternativa de segurança internacional, em oposição à hegemonia americana, e, para além da Rússia, já conta com o apoio da Indonésia e do Paquistão, entre outros. É assim muito possível que se esteja, já hoje, a assistir à génese de um eixo sino-russo, a agregar um número de estados alinhados.

Este é o contexto geoestratégico no qual a China se está a reorientar para auto-suficiência.

É um fato que não há nada de mal com auto-suficiência só por si e que é perfeitamente possível que o projeto chinês de auto-suficiência expresse apenas o propósito legítimo de fazer da China um país ainda mais desenvolvido e competitivo. Porém, a verdade é que, numa era de globalização e de interdependência, a procura de auto-suficiência, quando acompanhada de movimentações geopolíticas potencialmente hostis e de escaladas em repressão interna e militarização, pode ser tomada por uma tentativa de criar capacidade para suster isolamento estratégico em condições de tensão internacional aumentada. Aqui, faz sentido notar que o uso, na China, do conceito de ‘auto-suficiência’, ou ‘zili gengsheng’, remonta à era maoísta, durante a qual foi usado para justificar a realidade de uma China internamente disciplinada e altamente militarizada face ao exterior.

Ao longo da melhor parte das últimas três décadas, e de modo genérico, a China tem primado por desenvolvimento económico, por respeitabilidade em relações internacionais e pela reconquista gradual do apreço pela dignidade humana – que é, afinal, um valor essencial à venerável cultura milenar chinesa. Que a China possa aprofundar a sua opção por esse caminho.

Não obstante, e independentemente da direção que a China venha a seguir, talvez seja boa ideia que o Ocidente se lance de vez na sua própria reindustrialização, com base em tecnologias limpas. Isto já seria válido mesmo sem a ascensão de uma China estrategicamente ambígua e é tornado indispensável por tal ascensão.