O sistema de ensino superior português é encarado há 45 anos como um sistema binário, composto pelo ensino superior universitário e pelo ensino superior politécnico. Na sua origem, o ensino politécnico visava distinguir-se por uma natureza essencialmente prática, com uma identidade que privilegiasse o conhecimento aplicado, o carácter profissionalizante da sua formação e, ainda hoje dizem-nos os normativos legais que o regem, deve ser orientado para a criação, transmissão e difusão da cultura e do saber de natureza profissional.

Porém, em Portugal, assiste-se a uma hibridização deste sistema binário, onde as Universidades e os Politécnicos se assemelham, não apenas na sua oferta formativa, mas também na ciência que praticam (com muito pouca distinção entre criação de conhecimento e aplicação de conhecimento), e até nos programas de financiamento a que submetem os seus projetos de investigação ou de desenvolvimento – sem que exista um padrão diferenciador no que respeita aos apoios à I&D Fundamental e Aplicada. O mesmo se aplica quanto à dita 3ª missão do ensino superior de Ligação à Comunidade, assistindo-se a um indiferenciado posicionamento das IES Universitárias e Politécnicas no que concerne à sua “Prestação de Serviços à Comunidade”.

Chegados a este ponto, e no momento em que se discute a possibilidade da existência de Doutoramentos no Ensino Politécnico, as verdadeiras e primeiras questões a colocar nos vários graus de ensino neste sistema binário deveriam ser:

  • Como promover e aprofundar efetivamente a diferenciação entre o Ensino Universitário e Ensino Politécnico?
  • O que distingue a missão e a ação das Instituições Universitárias e das Instituições Politécnicas?
  • De que modo cada uma destas tipologias de Ensino Superior deve responder às necessidades dos territórios em que se encontram?
  • Que indicadores de desempenho devem orientar a performance das instituições universitárias e as instituições politécnicas?
  • Que requisitos de qualidade e que práticas de monitorização e avaliação devem existir para avaliar o que deve ser diferente?

Ainda que os mencionados objetivos originais e distintivos a que o Ensino Superior Politécnico se propunha não tivessem sido conseguidos, parece-nos que o caminho da sua afirmação e refundação passa pelo aprofundamento desses propósitos: ensino orientado profissionalmente, ligação às empresas, práticas investigativas aplicadas, criação e difusão de saber profissional, maior interconetividade institucional e empresarial entre as IES Politécnicas e as comunidades regionais e locais.

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O real desenvolvimento do país, assente numa economia de conhecimento, permeável à inovação decorrente da transferência do saber, resiliente e capacitado para um mundo globalizado e em constante transformação, só será facilitado com um ensino superior capaz de criar e difundir mais e melhor conhecimento em permanência (próprio do ensino universitário), a par de uma capacidade de aplicar e transferir o pensamento criado, criar conhecimento orientado e trabalhando quotidianamente em justaposição com o tecido económico (próprio do ensino politécnico). Tal só é possível com um verdadeiro modelo binário, como sucede em diferentes países desenvolvidos, europeus e fora da Europa.

Assim, a introdução do grau de doutor no Ensino Superior Politécnico, se devidamente singularizado e distinto do grau de doutor do ensino universitário, aprofunda o sistema binário, valoriza o ES Politécnico, cria um mecanismo estratégico de promoção da interação “Academia – tecido empresarial” e incentiva caminhos para a criação de soluções de valor acrescentado, assentes na ciência e no saber e contribuindo efetivamente para a valorização do tecido social e económico das regiões, e com ele para o crescente progresso social.

O argumento de que a atribuição do grau de doutoramento no ensino politécnico contribui para a sua aproximação do ensino superior universitário, não colhe. A ser assim, o que dizer dos graus de Licenciatura e Mestrado existentes em ambos os subsistemas? O verdadeiro problema não está em que os mesmos graus existam em ambos os subsistemas, mas antes que as suas características, natureza e metodologias de ensino-aprendizagem não sejam diferenciadas. Não parece avisado ignorar as profundas transformações no ensino superior politécnico que colocam hoje algumas destas IES com níveis de expertise muito superiores às das IES Universitárias em diferentes domínios especializados. Será igualmente desolador não ter em consideração que a necessária transformação e modernização do tecido empresarial português, tantas vezes propagada, seria em muito acelerada a partir do relevante papel que o ensino superior politécnico pode aí desempenhar, se os seus eventuais futuros doutoramentos colocarem ao serviço das empresas e organizações todo o know-how técnico e científico destas instituições, a que se junta o conhecimento das realidades empresariais que detêm, a sua proximidade e dispersão territorial, e o histórico das interações já hoje existentes.

É, pois, tempo de passarmos da retórica à ação.

Para muitos, a função do ensino politécnico é, tão simplesmente, a de formar técnicos superiores para as organizações e empresas, com uma forte componente profissional. Porém, o grau de especialização e o elevado nível técnico-científico que as respostas às sociedades contemporâneas impõem só são alcançáveis com graus de conhecimento e especialização muito aprofundados, assentes em práticas de I&D orientadas à criação de soluções inovadoras e ao desenvolvimento experimental de elevada tecnicidade.

Os doutoramentos nas IES politécnicas – e apenas nas que demonstrem deter requisitos de qualidade para o efeito – devem ser uma possibilidade real e ter uma natureza profissionalizante, de modo que aquela diferenciação seja aprofundada e que a ligação e a inovação nas empresas e organizações sejam uma realidade.

Permanecer com o status quo com as Universidades e os Politécnicos similares na sua oferta formativa, prática investigativa e prática institucional e avaliativa, como se observa hoje na maioria das situações, é abrir caminho para a absorção ou menorização dos segundos pelos primeiros, como de resto sucede já hoje na perceção que a sociedade portuguesa tem sobre o nosso ensino superior.

Se a racionalidade e a concertação de vontades a bem de todos se conseguir impor aos interesses e expetativas das partes, ganharemos todos, ganhará o ensino superior português.