A corrida à vacina contra o Covid-19 transformou-se numa poderosa arma política. A farmacêutica Pfizer anunciou que na terceira semana de novembro – se nada correr mal na reta final dos ensaios clínicos – estará pronta para pedir autorização à FDA para usar a vacina “em caso de emergência”. A Moderna, outra empresa americana, parece estar apenas uma semana atrasada relativamente à sua congénere. Ainda que todos os cientistas nos digam que qualquer vacina criada em tão pouco tempo tende a ter uma eficácia limitada, a verdade é que esta corrida americana não é só por razões de saúde pública. É por razões políticas. Ou não estivesse toda a imprensa a comentar que Donald Trump falhou o seu maior trunfo para a reeleição apenas por duas semanas. Uma unha negra.

Mas se os ensaios correrem bem, quem quer que ganhe as eleições passa a ter uma vantagem importante nas questões de liderança internacional. Não só pelo prestígio – a corrida à vacina sempre teve essa componente –, mas também porque tem uma oportunidade sem precedentes de endividar o mundo para consigo. A distribuição da vacina pelo mundo e a generosidade dos detentores das patentes têm o potencial de criar uma boa vontade internacional que se viu poucas vezes na história.

É certo que as democracias têm obrigações científicas que lhes são exigidas – e bem – pelas instituições que tutelam a ciência e a saúde pública. São precisas três rondas de ensaios e a terceira já obrigou à suspensão temporária da vacina de Oxford e da Johnson&Johnson. Há dois riscos latentes: o de que as vacinas produzam efeitos secundários graves, ou que tenham o efeito contrário de piorar a incidência do vírus. Daí que as duas vacinas-recorde estejam a coberto de todos os cuidados.

Mas também é certo que os Estados Unidos, o Reino Unido, a União Europeia e o Japão já compraram para os seus países 3,7 mil milhões de unidades. Mas pouco ou nada têm dito da necessidade de redistribuição pelo mundo. Pode argumentar-se que o problema está ligado a um esvaziamento abrupto do multilateralismo, que, em linguagem corrente, costumava tratar dessas coisas em conjunto com a sociedade civil. E ainda trata, se pensarmos na COVEX (projeto de distribuição da Organização Mundial de Saúde) a que os Estados Unidos não se associaram. Mas a China e a Rússia perceberam que, sem deixar de participar nos fora multilaterais, tinham uma oportunidade de ouro na mão.

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A China tem desenvolvido as suas versões da vacina em laboratórios do Estado e em instalações militares. A aprovação “para casos de emergência” saiu em julho. Calcula-se, que pelo menos centenas de chineses tenham sido vacinados em condições de risco. Mas isso, podem dizer, é uma questão de soberania. É verdade – ainda que roce a questão dos direitos humanos. Mas Pequim tem usado a vacina como um instrumento político, tendo como alvo os países em vias de desenvolvimento, cujas economias não têm capacidade de seguir as pisadas dos países do Norte. Um exemplo: em troca de indivíduos para testagem e de concessões na rota da seda, a dívida externa do Paquistão foi drasticamente reduzida e Islamabad terá acesso à vacina chinesa. Outro: países como as Filipinas e a Indonésia receberão vacinas a troco da resolução de disputas territoriais a favor de Pequim. Ah. E recordem que estes Estados fazem fronteira com o Mar do Sul da China, que é, neste momento, o território mais disputado na região da Ásia. Inclusivamente, pelos Estados Unidos, que não vêm com bons olhos o domínio chinês daquele território estratégico.

A vacina também faz parte do soft power chinês. Consciente de que o seu país perdeu pontos (e contratos da Huawai para a 5G) no prestígio internacional, Pequim quer agora limpar a sua imagem, tentando, novamente, colocar a China no papel de parceiro internacional responsável: “as vacinas”, declarou Xi Jinping, “servirão como bens internacionais públicos e nós vamos priorizar os países em vias de desenvolvimento”. Pequim a apresentar-se como um produtor de ordem onde o Ocidente não comparece.

Algo semelhante se está a passar na Rússia. A vacina Sputnik V, também desenvolvida em laboratórios públicos, já foi registada em agosto (antes dos testes estarem concluídos), mas Putin percebeu o rendimento que esta descoberta antecipada lhe podia dar. Já há cerca de 50 países interessados em negociar esta vacina – especialmente no Médio Oriente, onde Moscovo tem insistido em estabelecer zona de influência –, mas também em Estados com dificuldades económicas (e que querem evitar fazer compras à China), entre eles a Índia, o Brasil e países asiáticos desconfiados do gigante chinês. O resultado é ouvirmos líderes internacionais a fazer discursos de louvor a Moscovo que parecem ter sido escritos no Kremlin. Para a Rússia trata-se da recuperação do prestígio global que Putin nunca deixa de procurar e que é fundamental para a sua legitimidade interna.

Quer isto dizer que o Ocidente não tem interesses? Tem e deve, cada vez mais, fazê-los valer. Como se dizia lá em cima, uma liderança benigna pode não gerar ganhos imediatos, mas gera boa vontade que é dos bens mais precisos da política internacional. Desta inércia ocidental, comparada com uma China e uma Rússia ativas e prontas para fazer valer as armas que têm, há uma distância enorme, onde cabem muitas outras posições. Vêm deste quadro três lições, que já deviam estar aprendidas há muito: onde há vazios de poder, eles serão preenchidos por quem souber aproveitar a oportunidade; internacionalmente, a liderança e o prestígio contam. E quem não lidera, acaba por ser liderado, ou, pelo menos, ver as circunstâncias mudarem contra os seus interesses e valores. E neste caso particular, os Estados Unidos poderiam dar cartas com um selo de segurança que nem a Rússia nem a China podem dar. Escolheram, até este momento, não o fazer, perdendo uma oportunidade sem precedentes; finalmente, a Europa (exceto o Reino Unido, que já não pertence aos 27) não conseguiu, até agora, concorrer com os gigantes do mundo nesta área. O que mostra, mais uma vez, que por muito geopolítica que esta Comissão queira ser, a dependência é evidente, até do ponto de vista científico.