Pelos vistos, a hipótese de uma coligação pré-eleitoral que junte PSD, Iniciativa Liberal e CDS transformou-se numa dificuldade a caminho de uma impossibilidade. O PSD não quer parecer dependente da IL, um partido que Pedro Nuno Santos, como é evidente, já descreveu como sendo “radical”, o que deve ter assustado algumas almas sensíveis. A IL não quer parecer conformada com a domesticação das suas ideias em troca do poder. E o CDS não quer parecer desesperado pelo conforto de uma barriga de aluguer que o ajude a voltar ao Parlamento sem precisar de arranjar votos sozinho.

Os mais antigos, como eu, estarão seguramente a pensar que já ouviram isto em algum lado. E ouviram mesmo. Em 1979, quando a esquerda já disparava acusações de radicalismo contra quem pensava de forma diferente, Francisco Sá Carneiro precisou de uma paciência santa para conseguir que os dirigentes social-democratas mais angelicais aceitassem a coligação pré-eleitoral a que se chamaria Aliança Democrática. No VII Congresso, em julho, laranjinha atrás de laranjinha subiu ao palco para mostrar o seu púdico horror a qualquer acordo com os “fascistas” do CDS. Com muito esforço e suor, Sá Carneiro conseguiu convencer o congresso a autorizar a formação de uma coligação pré-eleitoral de incidência governativa que juntasse PSD, CDS e PPM. Mas havia uma exigência sem sentido: para evitar que o PSD fosse contaminado pela lepra, os congressistas impuseram que cada partido concorresse sozinho, sem a criação de listas conjuntas que contaminassem o estado imaculado da social-democracia. Naturalmente, isso não era suficiente porque tornava a coligação num mero exercício de retórica. Existiria uma coligação na teoria, mas não existiria na prática. Desesperado, Sá Carneiro insistiu nas listas conjuntas: levou o tema a conselho nacional uma vez e perdeu; levou o tema a conselho nacional outra vez e perdeu novamente. Só em Setembro conseguiu que o partido percebesse o que estava em causa.

Para conseguir que a luz penetrasse no teimoso crânio do partido, Sá Carneiro precisou de uma calculadora, de um mapa e de cinco voluntários. Os voluntários foram Vasco Pulido Valente, Carlos Macedo, António Capucho, Helena Roseta e Ângelo Correia, que naquelas semanas se meteram em vários carros e percorreram centenas de quilómetros, andando de sede do PSD em sede do PSD. Quanto ao mapa, que levavam nessas viagens, dividia o país nos vários círculos eleitorais. E a calculadora que traziam no bolso servia para explicar aos dirigentes do partido, como se fossem crianças da primária, o modo de funcionamento do método D’Hondt. Inventado pelo belga Victor D’Hondt, trata-se da forma de cálculo adoptada pelo regime português para transformar votos em mandatos. Não vale a pena perder grande tempo com detalhes, basta ir direto ao que realmente interessa: o método D’Hondt favorece os partidos ou coligações que conseguem mais votos. Ou seja: o mesmíssimo número de votos valeria mais deputados ao PSD, ao CDS e ao PPM caso se juntassem antes das eleições e não depois. Só assim, com esta crueza matemática, é que Francisco Sá Carneiro conseguiu arrastar o partido pelos cabelos em direção à AD. Para aspergir água benta e esconjurar o “fascismo” do CDS que tanto incomodava os puros, o líder do PSD juntou três ou quatro personalidades de esquerda que, com o nome de “Reformadores”, fizeram um acordo com o partido que seria paralelo à AD e que, segundo a crença da época, evitaria a reencarnação de Salazar na figura de Diogo Freitas do Amaral.

Talvez não seja ocioso lembrar que hoje continuamos a usar o método D’Hondt: se aplicados agora, o mapa e a calculadora dos voluntários de Sá Carneiro continuariam a dar os mesmos resultados. Caso, em 2011, o PSD e o CDS tivessem concorrido às legislativas com listas conjuntas, teriam tirado três deputados ao PS e dois ao BE. Nas legislativas de 2022, uma aliança pré-eleitoral entre PSD, IL e CDS teria conseguido mais dez deputados, o que impediria a maioria absoluta de António Costa.

Por estes dias, a Iniciativa Liberal tem argumentado que é um partido demasiado recente e que precisa de se afirmar para não se transformar numa agremiação “descafeinada”. Também aqui, a matemática pode ajudar a ganhar maior clareza: a IL foi fundada em setembro de 2017, o que quer dizer que nas próximas eleições estará prestes a fazer sete anos; quando foi criada a primeira AD, o CDS, que discutiu esses exatos riscos de uma coligação, tinha pouco mais de cinco anos. Cinco, parece-me, é menos do que sete.

No fundo, tudo se resume a isto: os argumentos políticos contra uma coligação pré-eleitoral à direita podem ser ultrapassados com trabalho e talento; mas não há trabalho nem talento que possa ultrapassar as particularidades do método D’Hondt. Já vai ser suficientemente difícil derrotar o PS, que se transformou numa espécie de partido-Estado, sem que a direita desperdice forças e energias a tentar, antes disso, derrotar a matemática.

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