A Europa que vai a eleições esta semana é um corpo político à procura de uma razão de ser. Desde as últimas eleições Europeias, em 2019, aconteceram crises que testaram os limites políticos e institucionais da União Europeia. A crise do Covid e a guerra na Ucrânia tiveram um impacto fortíssimo na própria ideia que a União Europeia tem sobre si mesma. Estas crises criaram os incentivos e as oportunidades para as elites Europeias dotarem o nível supranacional de funções que, historicamente, estavam reservadas aos Estados-Nação: o endividamento e a guerra.
Com a crise do Covid, as elites Europeias escolheram, pela primeira vez, emitir dívida comum. A emissão de dívida ainda não se revelou problemática. No entanto, quando houver uma nova crise, que desta vez poderá ser assimétrica, ver-se-á como os países reagem aos clamores de novos pedidos de dívida comum. O precedente da dívida comum abrirá uma crise política na União, com as clivagens habituais a virem ao de cima. Com a crise da Ucrânia, apesar das divergências internas sobre a saliência do assunto e a posição a tomar, a União Europeia envolveu-se politicamente na guerra de forma conjunta, avançando com compras coordenadas de material bélico. A guerra da Ucrânia tornou-se numa das razões de ser da União Europeia, numa situação com consequências imprevisíveis.
Os passos dados ao longo dos últimos anos pelas elites Europeias aconteceram num contexto interno e internacional muito complexo. Em primeiro lugar, o declínio tantas vezes anunciado da Europa, parece ser desta vez inexorável. A melhor medida deste declínio consiste na comparação com os Estados Unidos. A classe média Americana é hoje muito mais robusta e rica do que as suas congéneres Europeias, mesmo aquelas dos países mais ricos. Sob o fito do combate à inflação, Joe Biden injectou uma quantidade astronómica de dinheiro em inovação e na transição climática, que colocou os Estados Unidos décadas à frente na Europa. Em conjunto, o CHIPS and Science Act e o Inflation Reduction Act darão aos Estados Unidos uma vantagem muito confortável, tal como o investimento do Departamento de Defesa ajudou a criar Silicon Valley nos anos 70 e 80. Ao contrário do mito liberal, os Estados Unidos são dos países com maior e mais inteligente intervenção estatal do mundo. Em segundo lugar, a Europa não tem um modelo de integração de imigrantes. Apesar de necessitar desesperadamente de jovens imigrantes para rejuvenescer e continuar a ser sustentável económica e socialmente, os eleitorados dos países Europeus estão a mostrar forte resistência à criação de sociedades verdadeiramente multiculturais. As tensões com a imigração estão a servir de combustível para a consolidação de correntes de direita radical em muitos destes países. Não há uma solução fácil para este problema. Como convencer um grupo considerável de eleitores que as soluções multiculturais são óptimas para o futuro da Europa? Em terceiro lugar, depois do mandato de Trump e do Brexit, a União Europeia está a perceber os limites da sua própria auto-sobrevivência num mundo em que os Estados Unidos estão a rejeitar a ordem mundial que eles próprios criaram e lideraram nos últimos 60 anos. Tal como qualquer projecto político, a União Europeia tem os seus próprios mitos fundadores e os seus profetas, indispensáveis à criação de uma narrativa heróica em que um conjunto de países, depois do conflito mais sangrento de sempre, decidiram dar as mãos enquanto teciam loas à unidade e à paz entre os povos. Nada mais longe da verdade. Apesar da ideia de união ser uma antiga aspiração das elites do centro da Europa, a sua concretização – política, económica e social — apenas foi viável como parte integrante da estratégia de contenção dos Estados Unidos à União Soviética.
Face a este panorama, as eleições Europeias de 2024 são um momento interessante para tomar o pulso aos eleitorados nacionais, especialmente para medir o grau de rejeição eleitoral da União Europeia através do apoio a partidos que não são entusiastas do projecto. É muito provável que a extrema-direita ganhe as eleições em países-chave da Europa, nomeadamente França, Holanda, Áustria ou Itália. Penso que as implicações destas vitórias serão apenas indirectas, criando o momentum para estes partidos se apresentarem a eleições nacionais – essas, sim, com verdadeiras consequências – nos próximos anos. Não cometo o erro analítico de achar que as eleições Europeias são verdadeiramente consequentes na medida em que uma análise atenta do funcionamento real das instituições mostra que o poder de facto está praticamente todo no Conselho Europeu. Claro que os prosélitos da União listar-me-ão um conjunto de poderes dos quais o Parlamento Europeu dispões. No entanto, tal como todos sabemos, as decisões são tomadas em Berlim e Paris, co-adjuvados por um conjunto de países que, no fundamental, paga as contas. Isto é a vida tal como ela é. O Parlamento Europeu tem, na melhor das hipóteses, a capacidade de vetar as mudanças ao status quo. A capacidade de agenda-setting encontra-se, em grande medida, noutras instituições que não têm accountability eleitoral. Para usar uma metáfora clássica da ciência política, os deputados Europeus apenas podem escolher entre um menu pré-seleccionado anteriormente noutras instituições.
Num momento tão complexo o erro maior que as elites Europeias estão a cometer é o excesso de voluntarismo e a crença de que a fuga para a frente pode continuar a ajudar a União Europeia a funcionar. Estas fuga para a frente pode ser vista no apoio quase sem limites à potencial integração da Ucrânia no projecto ou a aceleração da integração dos oito países que estão na fila de espera para entrar. Mais uma vez, as elites Europeias confiam na velha teoria da bicicleta: independentemente dos problemas que existam, o importante é não parar de pedalar.
No entanto, creio que, a prazo, esta estratégia não será viável. Sejamos claros. Durante décadas, o consenso permissivo, através do qual as elites trocavam o apoio tácito dos cidadãos pelo aumento claro do seu bem-estar, serviu de legitimação ao funcionamento da Europa. Esse mundo acabou. Isto não significa que a União Europeia não continue a ser muito importante e, em larga medida, responsável pela relevância da Europa na cena internacional. No entanto, é muito difícil motivar o apoio dos cidadãos através de cenários contrafactuais. Isto é, justificar a burocracia e a governança Europeias na ideia de que, se não existisse União Europeia, os países estariam ainda piores. Existe uma percepção de perda relativa de estatuto social e político por parte de muitos cidadãos, que, sabemos, tem alimentado muitos fantasmas políticos a nível nacional. A tentação de fazer da União Europeia o bode expiatório será demasiado forte. Com dificuldades em aumentar o bem-estar das suas populações, muitos partidos por essa Europa fora não hesitarão, mais cedo ou mais tarde, em utilizar as falhas Europeias para cobrir as suas dificuldades.
Todo o cenário que tracei aqui é, evidentemente, não pensável pelas elites nacionais. Vista de Lisboa, todos estes problemas parecem vagamente longínquos. Nesse sentido, continuamos a não ser um país Europeu, talvez pelo isolamento geográfico. As elites Portuguesas são aquilo que denomino de Europeístas acéfalas, centradas, no fundamental, numa perspectiva utilitarista da Europa. Não existem verdadeiros Europeístas entre nós. Existe, sim, uma elite que vê a Europa como uma caixa multibanco, indispensável à manutenção do regime tal como ele vem sendo desenhado nos últimos 40 anos. O paradoxo de tudo isto é que, se as coisas correram mal no difícil equilíbrio Europeu, Portugal será um dos países mais fustigados.