Agora que o choque das legislativas passou e temos o governo formado, é hora de deixar Luís Montenegro e a sua equipa trabalharem. Muito em breve começaremos a ter a oportunidade de perceber até que ponto estão reunidas as condições para as reformas necessárias ao país. Creio que, infelizmente, não há condições políticas, económicas e sociais para fazer o que precisa de ser feito, acima de tudo porque, há décadas, foi criada a ilusão de que a mudança pode chegar sem criar uma clivagem entre ganhadores e perdedores. Por definição, a mudança de organização social e política, com reformas político-económicas, cria uma nova relação de forças. A longo prazo é possível – e até provável — que o bem-estar colectivo aumente. No curto prazo, contudo, o mais provável é termos perdedores. Numa sociedade democrática e com um estado social forte, os perdedores devem ser devidamente amparados. Infelizmente, na minha óptica, nada disto vai acontecer. Espero, naturalmente, estar enganado e, caso esteja, aqui o escreverei no devido momento.

Enquanto aguardamos pelos primeiros sinais políticos e económicos do governo, é altura de começar a discutir a Europa. Em cada ciclo eleitoral europeu é costume dizer-se que desta vez é mesmo importante. De vez em quando, o aviso é mesmo real. Em 2024 as eleições europeias são mesmo decisivas a nível continental. Em Portugal, estivemos de tal modo abstraídos com o longo processo eleitoral que se arrastou desde Novembro do ano passado que quase nos esquecemos que precisamente dentro de três meses estaremos já no rescaldo das eleições europeias.

Um pequeno balanço do último mandato dos órgãos europeus mostra, talvez, um dos momentos mais bem-sucedidos do projecto europeu o que, dadas as previsões das sondagens em todo o continente, não deixa de ser irónico. Em primeiro lugar, após uma resposta inicial tíbia à pandemia e à vacinação, as estruturas europeias conseguiram montar uma resposta de nível continental a qual, em grande medida, ajudou todo continente a superar uma enorme provação. Depois, na sequência da pandemia, as instituições mostraram que tinham aprendido as lições da crise das dívidas soberanas. Ao contrário de 2008, uma estratégia conjunta de fundos europeus e, mais tarde, combate forte à inflação, conseguiu, apesar de tudo, mitigar os efeitos negativos que os países mais pobres previsivelmente sentiriam. Por último, desde o início da guerra da Ucrânia que as lideranças europeias têm estado a comportar-se, no fundamental, de forma impecável, a defender os valores da democracia e da liberdade, ao mesmo tempo que tentam uma política de contenção da Rússia.

Face a este quadro seria previsível que os partidos centristas e fortemente pró-europeus se preparassem para ter um bom resultado. Uma leitura retrospectiva dos últimos cinco anos, levaria os cidadãos a concluir que o nível de governação supranacional foi indispensável para os desafios que atravessaram o continente, desde logo a pandemia. No entanto, as previsões correm em sentido contrários. De acordo com os dados mais recentes, existem fortíssimas probabilidades dos partidos de direita radical, com uma componente fortemente anti-europeia, venham mesmo a ganhar as eleições em países tão importantes como França, Itália, Holanda, Polónia ou Bélgica.

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A componente elitista da democracia europeia, baseada numa integração que, em grande medida, está alheada da democracia partidária e de massas, é um terreno absolutamente perfeito para a direita radical medrar. A ideia de que existem elites supranacionais, cosmopolitas, educadas, em grande parte, nas mesmas universidades e com gostos estéticos e éticos semelhantes encaixa que nem uma luva na narrativa simplista da direita radical. Para estes actores políticos, o povo puro, ainda baseado numa lógica de fronteiras nacionais e com pouca capacidade de usufruto dos benefícios que a cidadania pós-nacional oferece, pode, e deve, utilizar as eleições europeias como mecanismo de punição das instituições europeias.

Em larga medida, a culpa do ponto onde estamos é das elites europeias. Durante anos, quiserem acreditar no mito de que o chamado ‘consenso permissivo’ – através do qual as massas ignoravam a sua ausência de influência na definição das políticas ao nível europeu em troca de benefícios materiais – iria ser suficiente para que o projecto europeu avançasse. Mais, como escreveu, em 2007, de forma presciente, Peter Mair num artigo brilhante sobre o problema da democracia na Europa, quando um corpo político não permite que, dentro de si próprio, seja criada uma corrente institucionalizada de oposição, o que resta é a oposição ao próprio corpo político. Dito de forma mais simples, as elites europeias criaram uma situação tal em que não é possível ser contra políticas europeias sem ser contra a União Europeia. Para além disso, houve uma vontade das elites e do establishment de equacionar a União Europeia com a democracia. Por definição, de acordo com o ar do tempo, quem é anti-União Europeia é anti-democrático. A necessidade de aceitar o statu quo total, sem haver possibilidade de negociar e propor nuances dentro do sistema, só deixa um caminho possível: a rejeição total do statu quo.

Posto isto, as consequências das eleições europeias serão, de facto, sérias. A tempestade perfeita está a formar-se. Em primeiro lugar, há a forte possibilidade de Trump ser novamente eleito presidente nos EUA. Para além disso, a máquina económica Alemã está a gripar. O seu modelo económico assentava na premissa da energia barata vinda da Rússia e de uma integração cada vez maior dos mercados. Com um decoupling parcial entre o bloco europeu e a Rússia e, em menor medida, a China, a locomotiva está em sérias dificuldades. A ironia de tudo isto é que, nos anos a seguir de 2008, as decisões das elites do Sul no início da década de 2000 foram castigadas como erradas e promotoras de modelos económicos sem saída. Curiosamente, agora, ninguém discute o modelo económico obviamente errado e as escolhas das elites Alemãs, cujas consequências serão sentidas em toda a europeia.