Lançada em 1992, a música Creep da banda inglesa Radiohead pode ser entendida como representando o rock alternativo dos anos 90, a par de Smells like teen spirit e Come as you are, dos Nirvana, ou Alive, dos Pearl Jam. O movimento grunge tende a simbolizar a angústia de uma geração, exprimindo os sentimentos de estranhamento e alienação de quem se sente desajustado, com recurso a uma sonoridade forte e a uma performance quase violenta da voz, de que Kurt Cobain é o melhor exemplo. A letra de Creep retrata especialmente bem esse sentido, carregada de uma dimensão depressiva que ainda suscita reflexão.

But I’m a creep
I’m a weirdo
What the hell am I doing here
I don’t belong here

Na verdade, a música cumpriu regularmente o papel de veicular um sentimento de desagrado social, geralmente das gerações mais novas, desde o rock interventivo até ao movimento hip-hop. Mas o que parece aqui particular, e nos conduz à obra de Sally Rooney, é a incapacidade de definir os contornos daquela mensagem. Não há uma declaração política sobre aquela angústia, nem uma identificação clara dos problemas ou propostas de solução. Há apenas o expressar de um desajustamento informe e anestesiante. Nesse sentido, ler Rooney assemelha-se a ouvir de novo Creep – numa versão mais melodiosa, como na interpretação recente de Arlo Parks.

O protagonismo da irlandesa Sally Rooney começa com a publicação, em 2017, de Conversas entre amigos; mas é com Pessoas Normais, de 2018, que passa a ser considerada a escritora de referência do que, em contexto anglo-americano, se convenciona designar a geração dos millennials. O livro foi adaptado (muito fielmente) para série televisiva, tendo marcado os lançamentos de 2020 (entre nós, pode ser vista na HBO). Importa, no entanto, notar que não estamos perante romances de grande densidade. São livros leves, com o modelo de tempo e espaço imposto pelas tecnologias digitais e que marca o ritmo da narrativa e da conversação. Não surpreende, por isso, que a adaptação a episódios de cerca de 30 minutos tenha sido tão fácil.

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Rooney assume-se como marxista e os dois livros assentam nos referenciais pós-marxistas habituais das últimas décadas – embora se desenvolvam, talvez surpreendentemente, em torno do tema clássico das relações amorosas difíceis, que vão resultando e fracassando em função das possibilidades de entendimento abertas pelas personagens. Mas se o amor continua a ser o pano de fundo dos livros que apaixonam o grande público, não pode residir aí a novidade de Rooney e o seu papel de representante de uma geração. Esse lugar parece resultar antes do facto de as suas obras retratarem, de um modo bastante impressivo, uma espécie de vivência desajustada dos jovens que se encontram em percurso universitário. Em Pessoas Normais,

“Marianne tem um lado selvagem que o contagiou durante algum tempo e que o levou a sentir que era como ela, que sofriam ambos dos mesmos danos espirituais inomináveis, e que nunca nenhum deles viria a adaptar-se ao mundo.”

Entre os trabalhos em part-time e os estágios mal ou não remunerados, as suas personagens parecem viver, de modo anestesiado, uma vida que não desejam. Mais do que isso, esse estado de sonolência impede-os de pensar o futuro e idealizar objetivos, como se a sua vida não fosse verdadeiramente real.

Muitas décadas antes, já Sylvia Plath, em A Campânula de Vidro, nos tinha conduzido pelos labirintos mais escuros da sua mente numa narrativa que mortifica. No seu caso, o estado de sonolência resultava da sua incapacidade em dormir, o que a impedia de organizar adequadamente a própria noção de tempo:

“Não lavava a roupa e o cabelo [há três semanas] porque me parecia idiota fazê-lo. Imaginava os dias do ano sucedendo-se em séries de caixas brancas e brilhantes; separando-as estava o sono, como uma sombra negra. No entanto, para mim, a longa perspetiva de sombras que separava uma caixa da outra desaparecera de repente e eu podia ver agora uma sucessão de dias brilhando à minha frente como uma avenida ampla, branca e infinitamente solitária. Parecia-me idiota ter de me lavar num dia, quando teria de o fazer de novo no dia seguinte. Só de pensar nisso ficava cansada. Queria fazer tudo definitivamente e de uma só vez. Acabar com tudo isto.”

A angústia de Plath em torno de um estado depressivo recorrente, que conduziria a várias tentativas de suicídio, tornava-a incapaz de construir uma narrativa de sentido que ligasse o seu passado a uma história de futuro:

“Vi a minha vida dispersando-se em ramos à minha frente como a figueira da história. Na ponta de cada ramo, qual figo viçoso e suculento, acenava um futuro maravilhoso que me piscava também o olho. (…) Vi-me a mim própria sentada junto à figueira cheia de fome, porque não conseguia escolher entre tantos figos. Queria-os a todos, mas escolher um significava perder os outros, e enquanto ali ficava sem saber o que fazer, os figos murchavam e caíam, um após outro, a meus pés.”

É difícil não sermos envolvidos no sofrimento de Plath de tal forma a sua escrita nos familiariza com os seus demónios internos. É um sofrimento individual, pessoal, singular e, nessa medida, sentido como mais real do que acontece com as personagens de Rooney. Embora elas façam ecoar a mesma angústia, o mesmo estado depressivo, a mesma falta de sentido, o desajustamento de Rooney aparece, acima de tudo, como social: não temos razões que justifiquem um quadro de angústia individual; este parece resultar antes de um contexto esvaziado de sentido e que impõe um sofrimento específico.

O filósofo Byung-Chul Han, no seu último livro intitulado A sociedade paliativa, parte da atual pandemia para refletir sobre o caminho que fizemos, enquanto sociedade, para eliminar a dor e o sofrimento. Esta sociedade paliativa e medicamentada, que elimina o esforço, o desconforto, a dor, a oposição, e que parece, nesse sentido, desenhar uma linha de progresso, construiu o seu próprio paradoxo. Na medida em que estamos cada vez mais protegidos da dor, sofremos cada vez mais com cada vez menos. Será esta menor capacidade de resistir ao sofrimento e aos obstáculos a determinar muitos dos comportamentos autodestrutivos que as sociedades ocidentais têm registado? Em Conversas entre amigos,

“Subestimas o teu próprio poder como forma de te esquivares ao confronto com a culpa de tratares mal as outras pessoas. Convences-te disso através de construções que fazes dentro de ti mesma. Ah, a Bobbi é rica, o Nick é homem, estas pessoas não têm como ser magoadas. Quando muito, eles é que me querem magoar e eu estou só a defender-me.”

Nos países anglófonos, há uma preocupação crescente com situações de automutilação e, em especial, com o número crescente de suicídios entre os mais jovens – essa possibilidade máxima, como diz Sylvia Plath, de acabar com tudo isto: “Ao menos no Japão sabiam lidar com as coisas do espírito. Quando há qualquer coisa que não funciona, esventra-se.” O desajustamento torna-se real. Mas não serão estes sintomas resultado da própria sociedade paliativa? De acordo com Han,

“O crescente comportamento autodestrutivo pode ser entendido como uma tentativa desesperada do eu narcisista, deprimido, para se certificar de si mesmo, para se sentir. Sinto dor, logo existo.”

Se a dor desaparecer por completo, procura-se um substituto. E quanto mais paliativa é a sociedade mais violento será o substituto. Michel Houellebecq, na sua crítica mordaz à sociedade liberal, já tinha convocado a mesma reflexão, aplicada quase sempre à dimensão sexual. A exploração dos limites sexuais garantiria, na verdade, uma experiência de vida mais real, retirando as suas personagens da sonolência imposta por uma rotina esvaziada de rituais e uma sociedade esvaziada de sentido. Em Rooney, encontramos as mesmas aproximações à violência, sexual ou de automutilação, e ao suicídio (embora sem a fina ironia e a qualidade literária do autor francês).

As razões para este desajustamento geracional são muitas, como sempre acontece com fenómenos sociais complexos. Passarão certamente pelo conforto material de uma sociedade paliativa, que nos torna menos resistentes às dificuldades. Pela tecnologia digital e o papel desempenhado pelas redes sociais numa sociedade da imagem e da exibição, que nos impele a uma lógica de competição vazia. Pelo decrescimento económico, que muitos apontam como característica do pós-capitalismo. Pelo fim das grandes narrativas, que esvaziou as possibilidades de sentido e pertença. Ou pela ilusão de abertura e liberdade, que não se traduz em concretas possibilidades de escolha.

Em termos literários, os livros de Sally Rooney permitem uma aproximação a esse desajustamento geracional e à sua linguagem específica. Estudos recentes nas áreas das ciências cognitivas e da psicolinguística têm permitido delinear uma linguagem da depressão, com recurso a ferramentas de análise computacional de textos, sejam eles diários, ensaios ou mensagens em fóruns de conversação. Esse mapeamento linguístico destaca uma utilização forte de pronomes pessoais na primeira pessoa e de palavras “absolutistas”, como sempre, nunca ou completamente. Nesse sentido, a linguagem – literária, musical, quotidiana – permite-nos um diagnóstico individual, mas também social.

Em Portugal, o tema tem sido insuficientemente abordado entre nós, apesar de se tratar de um cenário cada vez mais recorrente para quem trabalha com jovens universitários, com referências frequentes a quadros de ansiedade, ataques de pânico, depressão. Mas a pandemia, e com a recente decisão de um segundo confinamento no ensino, colocará certamente o assunto em cima da mesa nos tempos mais próximos: que efeitos psicológicos para uma geração tendencialmente desajustada?