África tem sido gravemente magoada pela insegurança económica e alimentar aumentada que lhe tem vindo a ser infligida pelos impactos económicos da guerra na Ucrânia. Não obstante, a Rússia não tem tido pejo em dirigir continuamente o seu apelo aos países africanos, após a invasão, na tentativa de fortalecer laços com o continente. Assim, tem vindo a preparar uma cimeira Rússia-África, a avançar cenários dúbios de cooperação económica mútua, a participar em exercícios conjuntos, e a enviar Lavrov a países tão fulcrais como África do Sul, Angola, Uganda ou Etiópia.
A Rússia aproximou-se de África na última década, com o aparente propósito de, na era pós-soviética, recriar uma presença estratégica no continente. Assim, e embora não tenha desenvolvido um significativo peso económico em África, expandiu o comércio com os países africanos, obteve concessões mineiras e estabeleceu cooperações no setor energético. De igual modo, assinou acordos de cooperação técnico-militar com múltiplos países africanos, e veio a tornar-se, segundo o instituto sueco SIPRI (p. 7), a maior exportadora de grandes armas convencionais para o continente. Em tudo isto, privilegiou a criação de parcerias com regimes autocráticos, aos quais presta assistência em troca de colaboração política ou de acesso económico e extrativo.
Porém, a estratégia de Moscovo em África também tem passado por campanhas de influência e desinformação, mobilizadas para cultivar simpatia para com a Rússia e hostilidade para com o Ocidente, mas também para interferir em eleições, inflamar e explorar tensões sociais, e apoiar autocratas. Adicionalmente, e como apontado por Joseph Siegle para o Marshall Center (p. 81 e 87), estas campanhas procuram desacreditar e enfraquecer a democracia no continente, e cultivar a percepção de que a mesma não oferece qualquer vantagem sobre autoritarismo. Deste exercício, continua Siegle, advém a fragilização de governos legítimos, a disseminação de polarização social e o avanço de poder inconstitucional, tal como a consequente vulnerabilização dos frágeis tecidos sociais de muitos países africanos.
Da invasão em diante, e enquanto África tem sido afligida pelas disrupções nas cadeias globais de abastecimento e por escassez alimentar aumentada, Moscovo tem visado o continente com desinformação a racionalizar a guerra e a cultivar um sentimento antiocidental. Lavrov veio dar profundidade a este exercício quando alegou que a desestabilização dos mercados alimentares adviria das sanções ocidentais à Rússia, e não da agressão à Ucrânia. E, de resto, veio (a par do próprio Putin) acusar o Ocidente de presidir a uma divisão racista e neocolonial do mundo, para além de que louvou o papel da Rússia soviética nas lutas anticoloniais em África – no que pareceu tentar explorar o apreço que muitos africanos ainda têm para com a URSS, pelo apoio dado à libertação africana. Porém, e malgrado a retórica anticolonial, Moscovo chegou aparentemente ao ponto de pressionar estudantes africanos na Rússia para que aceitassem combater na Ucrânia.
Hoje, um dos principais veículos de instabilidade em África é a entidade paramilitar Grupo Wagner, que, claro, também está a participar na agressão à Ucrânia. Embora nominalmente privado, o Grupo tem sido consistentemente acusado de ser um instrumento de política externa do Kremlin e, em Novembro de 2021, uma resolução do Parlamento Europeu salientava (ponto 2, na p. 4) que o Estado russo parece ser responsável pelo financiamento, treino, gestão e comando operacional do mesmo. O Grupo Wagner está presente em vários países africanos. No Sudão, onde entrou paralelamente à aproximação Moscovo/Cartum, está alegadamente envolvido em desinformação e em atividades ilícitas relacionadas com exploração mineira. Na Líbia, está a colaborar com a facção de Khalifa Haftar, e veio a entrincheirar-se em instalações petrolíferas de importância estratégica – algo que lhe dá capacidade tácita para comprometer o hoje crucial fornecimento de energia líbia à Europa. E, no Mali e na República Centro-Africana (RCA), onde está a prestar assistência aos respetivos governos, parece estar envolvido em tortura, violações, execuções e massacres, tal como na exploração predatória de recursos naturais. A presença do Grupo Wagner na RCA acompanha, de resto, a transformação russófila que veio a afetar o país, e que passa pela incorporação de cidadãos russos na estrutura estatal, pela adoção do russo como uma das línguas oficiais do país, e até pelo recrutamento de centro-africanos pelo próprio Grupo para a guerra na Ucrânia.
Há já algum tempo que a Rússia está a olhar com atenção para o Sahel Ocidental, uma região afetada por conflito persistente alimentado por insurgência jihadista. Assim, tem vindo a aprofundar laços e a desenvolver cooperação de segurança com as juntas militares no Mali e no Burkina Faso, numa aparente tentativa de expandir a sua influência na região. Isto tem estado a acontecer contra o pano de fundo da deterioração de relações entre estes regimes e Paris, algo que já levou ao fim, em meados de 2022, das missões de assistência antiterrorista da França e dos seus aliados europeus no Mali, tal como ao recente cancelamento da missão francesa no Burkina Faso. É a coincidir com a aproximação da Rússia à região, que, ainda em finais de 2021, o Grupo Wagner entrou no Mali para prestar assistência às forças estatais no combate aos jihadistas. Mais recentemente, e segundo o Presidente do Gana, o Grupo terá estabelecido um arranjo similar com a junta burkinabe. No Mali, as operações envolvendo o Grupo Wagner são caracterizadas, segundo o prestigiado ACLED, pela normalização de violência indiscriminada contra civis. Ainda, e desde que as forças europeias saíram do país, houve um aumento das extensões desgovernadas do território e um fortalecimento da insurgência jihadista. Como apontado por um estudo recente para o Centro de Combate ao Terrorismo de West Point, o Grupo Wagner não só é incapaz de preencher o vácuo criado pela saída das missões europeias, como a violência contra civis que é por si tipificada veio facilitar o recrutamento jihadista. Assim, continua o estudo, o Grupo está, na prática, a contribuir para agravar a ameaça jihadista no Mali. A isto acrescente-se que um crescimento da jihad em território maliano poderá tornar intratável a já dramática situação de segurança no Burkina Faso, e agravar a dos estados litorais do Golfo da Guiné, que são já hoje ameaçados pela expansão regional de jihadismo.
É essencial que África se liberte da instabilidade que a Rússia traz ao seu seio. Porém, o facto é que Moscovo desenvolveu relações relevantes no continente, e muitos países africanos dependem hoje da assistência da Rússia, ou ainda de cereais e de equipamentos militares russos. Os laços com a Rússia terão até contribuído para que múltiplos países africanos evitassem sancionar Moscovo, ou ainda afrontar o Kremlin nas Nações Unidas aquando das resoluções sobre a guerra.
Libertar-se da influência prejudicial da Rússia é uma iniciativa que, claro, cabe apenas aos países africanos. Porém, e como notado neste estudo para o Instituto Tony Blair (p. 26-29), o Ocidente pode e deve apoiar um tal propósito, através de políticas a encorajar o fortalecimento da democracia no continente, a promover a segurança regional, e a apoiar o desenvolvimento económico de África.
Uma África democrática e em visível desenvolvimento não precisaria de depender de estados como a atual Rússia. Porém, também assumiria uma posição fulcral na economia global. Como observado por Joseph Sany para o U.S. Institute of Peace, com 60% da terra arável não cultivada do globo e vastas riquezas naturais, África tem o potencial para se alimentar a si mesma e para se tornar numa exportadora global de alimentos e de recursos, assim robustecendo as cadeias globais de abastecimento – e, acrescente-se, libertando-as de disrupções como as causadas pela agressão à Ucrânia.
Não obstante ser afetada por graves lacunas infraestruturais e tecnológicas, África já hoje está em rápido crescimento económico, e deverá continuar a crescer, segundo o FMI. Adicionalmente, está interessada no desenvolvimento do seu poder produtivo, e usufrui de uma demografia jovem e de urbanização rápida, tal como de uma área de comércio livre a abranger 55 economias africanas.
A modernização de África poderá ser vigorosamente acelerada pela Parceria para Infraestrutura e Investimento Global, pela qual o G7 pretende investir $600 mil milhões nos próximos anos no continente africano e noutras regiões. E, a par da iniciativa do G7, a UE prepara-se para investir €150 mil milhões, e os EUA $55 mil milhões, numa África que tem tudo para vir a ser uma parceira vital do Ocidente. É importante que estes investimentos sejam norteados para libertar o potencial de África, melhorar as vidas dos africanos e integrar em pleno o continente nos mercados globais. Só assim poderá ser concretizado o propósito africano de uma África pacífica, próspera e dinâmica.