A pandemia da Covid-19 veio pôr em xeque muitas das estruturas institucionais da nossa sociedade: desde a política à economia, desde a saúde à religião, todos experimentámos como era necessário repensar as formas de ação e adotar um novo estilo de promover as diversas atividades e formas de estar em sociedade. Ninguém estava preparado para isto. Aos poucos, todos procuramos recuperar aquilo que são as funções e prioridades, da melhor forma, e sendo promotores da saúde pública. Há princípios básicos nos quais tem de assentar a vida quotidiana, as relações entre pessoas e instituições e o bom funcionamento da vida democrática. Para nós será a Constituição portuguesa que consubstancia os direitos fundamentais. Esta baseia-se na interação entre pessoas e instituições, em que não há um poder que está acima de outro, nem alguém mais digno que outro, mas somente a lei pode reger os limites das nossas ações. Infelizmente, estes meses de pandemia vieram mostrar como isto não é sempre verdade, nem em todo o lado. Quando e onde menos se espera surgem os tiranetes, que pretendem pôr e dispôr, não segundo a legalidade e a racionalidade, mas segundo a própria ideologia.
A delegada de Saúde de Óbidos, desde o início da pandemia, viu-se legitimada a tomar uma série de decisões que extrapolam aquilo que são as suas funções. De um momento para o outro, passou a ser a decisora de tudo o que se pode ou não fazer. Ora, as suas funções são eminentemente técnicas, ou seja, a sua função é dar pareceres técnicos, fundados naquilo que são os conhecimentos científicos e as orientações dadas pelas instituições responsáveis, como a DGS. No entanto, constantemente temos sido surpreendidos por ocasiões em que os pareceres técnicos vão muito além disso. A delegada de Saúde de Óbidos considera-se revestida de capacidade para autorizar ou não a realização de determinada atividade e a forma como ela se realiza, várias vezes indo além das orientações técnicas dadas para a natureza de determinado evento. Aceito – e todos devemos aceitar – que sejam dadas indicações sobre a melhor forma de determinado evento se realizar em vista a salvaguardar a saúde de todos e a prevenir a propagação do vírus. Pode mesmo desaconselhar a realização de determinado evento, mas não pode proibir unilateralmente e ameaçar o envio de forças de segurança. Claro está que falo de forma particular de celebrações religiosas, nomeadamente missas, que a delegada de Saúde insiste em querer tratar como eventos culturais. Quem não distingue, confunde, e quem não é capaz de ver para além da própria ideologia acabará sempre por confundir uma missa com um espetáculo, uma celebração religiosa com um evento político-partidário. O que está em causa não é a religião, mas a própria democracia, na medida em que o culto religioso consubstancia uma das principais formas de liberdade de consciência. Com efeito, se perdermos a diferenciação funcional entre as várias instituições, perdemos a complexidade da própria democracia e esta está ameaçada de se tornar num regime ditatorial, em que uma instituição (ou pessoa!) se torna na fonte última para a concretização da vida das outras pessoas e das instituições. Isso não pode acontecer a bem da própria democracia.
No início de maio de 2020 as paróquias de Óbidos procuraram organizar uma «Missa Drive-In». Fomos surpreendidos com uma reação autoritária e completamente infundada da delegada de Saúde de Óbidos, decidindo, por ela própria, a proibição da realização de tal evento e sendo nós informados que as autoridades de segurança já tinham sido mandatadas para estar no local e impedir a realização de tal missa. Ainda se procurou dialogar sobre a melhor forma de realizar tal evento, mas a delegada de Saúde foi inflexível. Qual foi o nosso espanto quando, por todo o país, nos dias seguintes, se realizaram «Concertos Drive-In», tipo de eventos que, seguindo a lógica da delegada de Saúde de Óbidos também estava proibido. Já naquela altura se foi sentindo que mais que pareceres do ponto de vista técnicos estávamos diante de tomadas de posição de ordem ideológica. No entanto, aceitámos que podia ser fruto da imaturidade da situação pandémica e de ainda não se ter aprendido a viver em tal situação. Contudo…
Ao longo destes meses continuamos a ser surpreendidos com diversos pareceres que não visam a natureza do que está a ser promovido. Como uma missa de promessas de escuteiros que foi enquadrada pela delegada de Saúde como «celebração de casamento ou batizado». Foi chamada rapidamente a atenção para a desadequação da situação, mas sempre sem qualquer resposta. Em diversas atitudes se demonstra o défice democrático da delegada de Saúde de Óbidos, que sempre se mostra indisponível para o diálogo. Sempre aprendi que se queremos conhecer o que pensa realmente uma pessoa devemos dar-lhe um bocado de poder. A unilateralidade ideológica da delegada de Saúde de Óbidos é gritante neste sentido.
Mais recentemente têm-se feito, através de várias associações e outras instituições, celebrações de missas para assinalar as festas dos padroeiros das aldeias. Procura-se fazer atempadamente os planos de contingência e tomar as outras diligências. Sistematicamente, a aprovação dos mesmos é divulgada poucos dias antes da realização do evento (já chegou a ser no dia imediatamente antes). Poderíamos pensar que isso se devia ao volume de trabalho que esta situação implica, mas quando sabemos que concelhos próximos, com população muito maior, recebem aprovações de planos de contingência dois ou três dias depois do envio dos mesmos (e, portanto, por vezes uma semana ou mais antes da realização dos eventos), podemos questionar a competência da delegada de Saúde de Óbidos, que, pelos vistos, está mais preocupada em seguir pareceres ideológicos do que dar pareceres técnicos.
Mais recentemente, a propósito da missa do cinquentenário do escutismo em Óbidos, fomos avisados dois dias antes da realização da celebração que teria de ser obrigatória a realização de testes para o acesso à mesma. Claro está que essa indicação foi questionada, na medida em que se tratava de uma missa e que, portanto, não estava de algum modo enquadrada neste tipo de obrigação, baseados nas orientações aprovadas pela DGS. Com efeito, os eventos culturais estão obrigados a esse tipo de exigências, não as missas. Temos de reconhecer: desta vez a autoridade de saúde teve a humildade de voltar atrás e de reconhecer que não podia estabelecer tal obrigação. No entanto, não se deixam de assinalar os tiques de autoritarismo, que supõem a cobardia ou pelo menos o acanhamento de quem é destinatário de tais determinações. No entanto, não devemos esquecer que o que está em causa é o direito à liberdade religiosa e liberdade de culto. Quando estes direitos fundamentais são postos em causa não estamos diante de um problema unicamente político, mas de um problema que atinge muito mais fundo a construção do que entendemos por sociedade, porque atinge o mais íntimo das pessoas e a sua capacidade de autodeterminação. Em última análise, é sempre a liberdade que está a ser posta em causa.
Muitas pessoas do concelho de Óbidos têm-se sentido desconfortáveis com a falta de profissionalismo da delegada de Saúde de Óbidos, não só por estas situações antes descritas, como por muitas outras. A vida das pessoas e instituições de Óbidos fica em suspenso, sujeita a uma autoridade que se tornou superior a outras autoridades, que se viu revestida de um poder discricionário nunca antes visto numa democracia. Aliás, é a própria democracia que está em causa diante de toda esta situação, pois, quando as instituições deixam de estar em pé de igualdade para dialogar e cooperar, então surge a ameaça, a desconfiança e a degradação da democracia. A democracia não é só política, mas a interação das diversas instituições, desde a política à economia, desde a técnica (como a saúde e outros) à religião. Abdicar disto seria abdicar de um país livre e democrático. Viver num país democrático é confiar que as pessoas tomam decisões sustentadas na responsabilidade pessoal. Assim sendo, diante de uma reiterada extrapolação das próprias responsabilidades e das funções que deveria exercer, pensamos que passa a ser necessário enviar pedidos de autorização para os superiores da delegada de Saúde de Óbidos, nomeadamente a ARS de Lisboa e Vale do Tejo, para que também neste concelho de Óbidos se apliquem os mesmos critérios aplicados noutros locais. A bem de Óbidos, a bem da democracia, a bem de todos.