Desde o início da guerra na Ucrânia que a Alemanha não lidera a resposta europeia. É empurrada pelos Estados Unidos, puxada pelos polacos, ultrapassada por Macron, embaraçada pelos países bálticos e, de um modo geral, parece estar sempre a ir para onde, se pudesse, não iria. Quando podia ser o motor da resposta europeia, mesmo que fosse para dar algumas respostas mais realistas que idealistas. Mas não é o que tem acontecido. E há uma longa razão para isso.

No último jantar que teve em Berlim com a Chanceler Angela Merkel, já depois da eleição de Donald Trump como seu sucessor, Barack Obama ter-lhe-á dito que ela era, agora, a líder do Mundo Livre. Não se sabe o que Merkel respondeu, mas pode-se imaginar.

Apesar da sua responsabilidade na transição para o Pacífico e de algum desinteresse pela Europa ao longo das suas presidências, Obama sabia duas coisas: o Ocidente ainda era uma ideia, antes de mais, americana e europeia; e, não estando na Casa Branca um crente na relação transatlântica (convém lembrar que Trump chegou mesmo a dizer que os europeus eram inimigos), a liderança do Ocidente (que é o mesmo que o Mundo Livre para os presidentes americanos) havia de estar na Europa e, em particular, em quem liderava de facto a União Europeia. Até porque à época os britânicos já tinham decidido sair da União Europeia e nunca tinham querido liderá-la enquanto lá estiveram.

Merkel teve várias virtudes e defeitos, mas há uma coisa que não soube ser, provavelmente porque não quis: líder do Mundo Livre ou do Ocidente. Não foi só quando um dia respondeu ao Financial Times que isso do Ocidente era um conceito que mudava muito conforme a geografia. O problema foi sempre outro. Merkel tinha valores e, quando foi necessário, mostrou-os, mas acreditava mais na estabilidade e no comércio e negócios entre os países do que na ideia de Ocidente e de Mundo Livre. E, talvez até por razões pessoais, evitava o proselitismo. Mas o problema não é só seu, é mesmo alemão.

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Há duas histórias de antes da guerra na Ucrânia que importa não esquecer.

Primeira: a dependência energética e a traição alemã ao leste. Desde o início da construção do Nord Stream I (o gasoduto que está a funcionar e por onde vem o gás russo) que a Ucrânia e a Polónia, entre outros, avisaram que a Alemanha estava a criar uma relação directa com a Rússia que permitia que um dia Moscovo lhes fechasse a torneira do gás continuando a fornecer os alemães. Ou, não disseram mas foi o que veio a acontecer, que os russos atacassem a Ucrânia sem que isso implicasse deixarem de enviar gás para a Alemanha, e receber o respectivo pagamento. Ou seja, se houve alguém que não prestou atenção ao risco da dependência energética da Rússia e que confiou na relação directa (e exclusiva, porque a Alemanha nem sequer tem como receber gás liquefeito, em alternativa), foi a Alemanha. (E nem se fale do antigo chanceler Schroeder que trabalha para a Rússia, porque isso é quase do domínio da corrupção. Pelo menos moral.)

A segunda lição foi a que vimos há umas cinco semanas, em Washington. Foi Joe Biden, não foi o Chanceler Olaf Scholz, que avisou que em caso de invasão russa da Ucrânia os alemães saberiam o que fazer quanto ao Nordstream II (que ainda não estava a funcionar). Durante toda a conferência de imprensa conjunta, Scholz fez de tudo para evitar o assunto. E só quando a Rússia de facto invadiu é que a Alemanha se convenceu que teria definitivamente de abdicar do gasoduto que duplicaria a sua relação energética com a Rússia. Assim como foi a Alemanha (se ignorarmos a Hungria, que é todo um outro problema) que mais resistiu ao envio de armamento para Khyv, quando vários países europeus o estavam a querer fazer, ainda antes do começo da guerra.

Pode ser por realismo económico, porque sabe que do gás russo depende muita indústria europeia, porque sabe que a geografia é uma condição imutável e a Rússia será sempre vizinha da Europa, ou porque sabe que o diálogo tem de ser sempre possível. Seja porque for, a Alemanha pode ter óptimas razões para defender uma abordagem mais contida em relação à guerra e a Moscovo (e embora internamente tenha tomado a decisão radical de aumentar extraordinariamente o investimento na defesa), a verdade é que Berlim tem estado atrás das decisões europeias, não por detrás. Tem seguido, não tem liderado. Tem resistido.

A semana passada, o presidente Biden foi à Polónia mostrar que estavam ali soldados americanos e dizer até o que muitos pensam mas não dizem (e alguns acham mesmo que não se deve dizer). Scholz, não tem feito nada disso. Na televisão, recusou-se a chamar criminoso de guerra a Putin; no envio de meios de defesa, resistiu o mais que pôde e enviou proporcionalmente muito menos do que outros Estados europeus bem mais pequenos; e na discussão energética não tem conseguido dizer mais do que a verdade (o gás russo é, neste momento, indispensável à economia europeia), sem dizer nada com significado político europeu.

A invasão russa da Ucrânia marca, manifestamente, uma das maiores transformações políticas no mundo, no Ocidente e na Europa. E na Alemanha também, mas por arrasto.