Sou realista, logo utópica

Sou frequentemente confrontada com a ideia de que a utopia é uma mera quimera, um sonho irrealizável. O mundo não precisa de sonhadores – dizem-me –, mas de pessoas que tenham um forte sentido da realidade. Até gosto que me critiquem, pois tenho já engatilhada a resposta: é precisamente por conhecer bem a realidade e por não gostar dela que penso em alternativas.

As mais de três décadas de investigação na área dos Estudos sobre a Utopia deram-me a perceção histórica da potencialidade de concretização de projetos utópicos: cada etapa da civilização é marcada pela realização de ideias anteriormente consideradas meras quimeras. Bastará pensarmos no fim da escravatura, na implantação de regimes democráticos e na igualdade constitucionalmente consagrada de direitos entre homens e mulheres – todos exemplos de conquistas que as sociedades foram fazendo, ao longo dos séculos, nas áreas da justiça, da educação ou dos direitos humanos.

Os utopistas são frequentemente apodados de loucos, mas são eles que fazem a sociedade avançar.

A utopia como estratégia

Há duas formas possíveis de construirmos o futuro. Na primeira forma, perguntamos: com as ferramentas de que dispomos, que futuro seremos capazes de construir? Embora interessante, a pergunta limita-nos às ferramentas existentes. Na segunda forma, questionamos: que futuro somos capazes de imaginar e desejar? – e só então pensamos nas ferramentas de que necessitaremos e trataremos de criar. A construção social é, demasiadas vezes, inspirada pela primeira questão. Nas sociedades complexas em que vivemos, assoladas por uma crise que resulta da conjugação de diferentes fatores interdependentes, apenas a segunda questão será capaz de abrir caminhos para a construção de sociedades radicalmente diferentes.

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A utopia responsabiliza-nos

Precisamos de ser capazes de imaginar modelos a partir dos quais possamos (re)organizar o mundo. Necessitamos de utopias radicais que, em pequena escala, experimentem o futuro no presente e resultem de processos de discussão participativos; e temos de saber impedir que esses projetos se tornem hegemónicos. A sociedade do futuro só será sustentável se nela conviverem projetos utópicos polifónicos, integrando diferentes vozes e abrindo espaço à constante discussão e avaliação dos novos caminhos a trilhar.

Precisamos de promover a literacia sobre o futuro. Necessitamos de demonstrar, com exemplos do passado, que o futuro pode mesmo vir a ser como nós o quisermos – tenhamos nós a ousadia de o imaginar. E é urgente que expliquemos: ao mesmo tempo que nos convida a criar alternativas, a utopia responsabiliza-nos – se o futuro for igual ao presente, terá sido mesmo apenas por nossa opção.

O nosso cérebro utópico

O nosso cérebro é um órgão prospetivo. A imaginação de mundos melhores e uma psicologia orientada para o futuro são características essenciais que nos distinguem dos seres não-humanos. O nosso cérebro está constantemente a recombinar experiências ou perceções do nosso passado para saber como agir perante novas situações; planeia, prevê, projeta – prepara-se para construir o futuro.

A imaginação cumpre uma função fundamental em todo este processo, fazendo-nos transcender a nossa experiência imediata. As utopias são essenciais, nesse sentido, pois assumem-se como imagens fantasiosas direcionais que indicam possibilidades reais e abrem caminho para a transformação social.