Era o que faltava!”. Foi assim que António Costa respondeu, na Madeira, a jornalistas que lhe perguntaram se iria pedir desculpas a David Neeleman, o ex-accionista da TAP, que lhas tinha exigido depois de Costa, no debate com Rio, ter declarado falsamente que “em 2020 as empresas do senhor Neeleman foram caindo em todo o mundo”.

António Costa, como se sabe, não se preocupa particularmente com a correspondência das suas palavras com a realidade. Tal como tem uma teoria da história, cuja premissa básica expôs sumariamente no último debate na RTP – questionado sobre o facto de Portugal ter vindo nos últimos anos a ser ultrapassado por vários países do Leste europeu, saiu-se com um “a história explica isso” prenhe de sabedoria filosófica –, tem igualmente uma teoria da verdade. Para ele, a verdade é o que lhe dá mais jeito. É a teoria da verdade jeitosa. Que é uma teoria que o satisfaz, é fácil de ver pelo gosto com que a aplicou nos debates para estas legislativas.

Os fundamentos da teoria da verdade jeitosa são fáceis de explicar. Eis uma breve exposição técnica. Produza-se uma frase sintaxicamente bem construída (a correcção da sintaxe não é estritamente necessária; basta que o receptor da frase consiga sem grande dificuldade impor-lhe mentalmente a sintaxe correcta). Digamos: “A história explica isso”. Face a uma frase destas, não nos devemos preocupar com a questão semântica da sua correspondência com a realidade. Para a teoria da verdade jeitosa, rompendo com as doutrinas tradicionais, a sintaxe, mesmo aproximativa, é o critério de verdade. Em todos os casos? Não, certamente. E aqui aparece claramente o elevado grau de sofisticação da teoria. Para que a sintaxe (mesmo aproximativa) possa ser o critério de verdade é necessário que a frase dê jeito ao seu emissor. A frase “A história explica isso” dá ou não dá jeito ao emissor-Costa? Cabe-lhe a ele decidir, e, se der – se, por exemplo, ajudar a sacudir a água do capote do PS na matéria –, a frase é verdadeira. É verdadeira sem que seja necessário o incómodo processo da inquirição do seu acordo ou desacordo com a realidade. Tal é um dos méritos práticos e teóricos da teoria da verdade jeitosa: uma grande economia de pensamento. Em última análise, nem sequer é necessário pensamento para atingir a verdade assim definida, a não ser na forma mínima da consideração exclusiva dos nossos interesses. E quem duvida que o emissor-Costa é capaz desse esforço, que, para além de tudo, é para ele um gosto?

Mas voltemos à TAP, até para aprofundar a robustez e a proficuidade da teoria. Sabe-se que o governo tenciona injectar, até 2024, 3,3 mil milhões de euros na TAP. O que nos aconselha a teoria da verdade jeitosa? Aconselha-nos um movimento necessário e um movimento opcional. O movimento necessário indica-nos que devemos, contrariando aqueles que protestam que é uma inimaginável batelada de dinheiro roubado ao bolso dos contribuintes, mostrar que a quantia é até irrisória se comparada com o inexcedível valor da nossa “companhia de bandeira”, que enche o coração dos portugueses de alegria. A pátria definharia a olhos vistos se perdesse essa sua luz interior que navega nos céus. Os portugueses mergulhariam num acabrunhamento que lhes faria perder, de um instante para o outro, o próprio sentimento da identidade nacional. O caos instalar-se-ia. Os benfiquistas vestir-se-iam de azul e branco, os sportinguistas de vermelho, os portistas adorariam um animal compósito, meio águia e meio leão. A jornalista Anabela Neves deixaria de repetir, nos seus comentários, todas as palavras de António Costa. Resumindo: o fim do mundo tal como o conhecemos.

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Mas, como a alma humana é o que é e tantas vezes resiste à verdade, pode ser preciso recorrer a um segundo movimento que a verdade jeitosa aconselha. E nestes casos não há que hesitar. É preciso afirmar claramente: os contribuintes portugueses não pagam nada pela TAP e nada pagarão no futuro. O dinheiro vem de outro lado. Não convém perguntar de onde vem então. E se a pergunta, reaccionária entre todas, aparecer mesmo, a resposta terá de ser: “A história explica isso”. Caso seja necessário, reenviar-se-á o questionador impertinente a qualquer um dos 120 artigos com que o cineasta António-Pedro Vasconcelos instruiu, como só ele sabe, o povo sobre estas matérias. No pior dos casos, o questionador ficará tão confundido que passará, aliviado, a outro assunto. E a verdade jeitosa triunfará por desistência do adversário.

Não se contam os campos em que a verdade jeitosa, tal como magistralmente praticada por Costa, encontra luminosas e frutuosas aplicações. Darei apenas um exemplo, antes de acabar. Uma velha polémica, na filosofia das ciências, opõe aqueles que defendem que há certas experiências que têm o poder de mostrar definitivamente que uma determinada teoria é falsa – ou de mostrar que é verdadeira, as escolas dividem-se. São as chamadas experiências cruciais. Outros, pelo contrário, sustentam que é sempre possível à teoria imunizar-se às objecções através da criação de hipóteses auxiliares – as chamadas hipóteses ad hoc – que, consistentes com as hipóteses iniciais da teoria, a defendem dos ataques dos seus opositores. A teoria da verdade jeitosa encaixa aparentemente nesta segunda doutrina. Mas só aparentemente, porque revela um enorme avanço por relação a ela. É que o requisito da consistência é corajosamente abandonado. Tudo vale. As hipóteses auxiliares podem ser contraditórias com o núcleo da teoria que não faz mal nenhum. Dá ou não dá jeito? – é a única questão. Se dá, a coerência que vá para as urtigas e que leve consigo a realidade e o mau hábito dela de nos pôr em causa.

Alguém de má vontade poderá sugerir que pretendi dizer que António Costa é um mentiroso impenitente. É a minha vez de dizer: era o que faltava! António Costa é sim um político visionário que encontrou um método magnificamente eficaz para tentar convencer os portugueses daquilo que lhe dá jeito. Atinge a verdade jeitosa quase infalivelmente. Como o consegue? Como se alçou ele a tais patamares em que pode olhar para a realidade sem que nunca ela consiga desmenti-lo? Como pôde um tal espírito medrar em Portugal? A história explica.