Notícias dos últimos dias põem uma dúvida crucial quanto à qualidade da nossa democracia: por que viela esconsa e procedimento oculto puderam deputados do PS introduzir numa lei quase final o veneno da discriminação contra os judeus? Não houve projecto de lei. Então, como foi? Como é possível exercer iniciativa legislativa fora do que a Constituição e a lei prescreve?

A Assembleia da República representa todos os cidadãos e é em seu nome que legisla. Numa Assembleia democrática, é condição fundamental a transparência do processo legislativo. É indispensável para o público conhecer os projectos apresentados e poder acompanhar a sua tramitação do princípio ao fim, sobretudo nas etapas mais relevantes.

Estas etapas são sobretudo duas: generalidade e especialidade, ambas com debate, seguidas de uma terceira sem debate, a votação final global. É semelhante noutros parlamentos. A finalidade do processo é clara: pluralismo e contraditório aos olhos do povo. Não basta que partidos e deputados esgrimam e decidam entre si; é essencial que o façam com portas e janelas abertas. Se a decisão parlamentar fosse de portas fechadas, seria ilegítima. É fundamental que o público, querendo, possa acompanhar tudo o que acontece, conheça os textos logo que entrados, saiba como cada um opinou, siga como cada um vota e porquê. Se não fizer assim, a Assembleia da República não está a representar todos os cidadãos, nem a legislar realmente em seu nome.

Essas etapas estão reguladas nos artigos 143º a 155º do Regimento, transparecendo noutras normas dispersas, e vêm enunciadas, ao mais alto grau, no artigo 168º da Constituição. O portal electrónico da Assembleia da República relata-o muito bem: “Depois de ser admitida pelo Presidente da Assembleia, a iniciativa é objeto de um parecer da Comissão especializada a quem foi distribuída, seguindo-se o seu debate na generalidade, sempre feito em reunião Plenária, que termina com a votação na generalidade (sobre as linhas gerais da iniciativa). Segue-se um debate e votação na especialidade (artigo por artigo), que pode ser feito em Plenário ou em Comissão. Há matérias cujo debate e votação na especialidade é obrigatório em Plenário. (…) O texto final é submetido a uma votação final global sempre feita em Plenário.”

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Quem escreveu os textos normativos não o fez para crianças, necessitando de o fazer em modo bê-á-bá. Dirigiu-se, em abstracto, a legisladores adultos, conhecedores e honestos, que sabem bem porquê e para quê existem aquelas etapas, distintas e separadas, no processo parlamentar.

Em declínio partidário, porém, a prática foi abrindo atropelos graves à transparência e seriedade da produção legislativa, cedendo às conveniências e a truques de poder, com danos severos para a democracia e para a qualidade de algumas leis. As inovações mais comuns e perversas (a meu ver, inconstitucionais) são o processo da açorda e, conforme os mestres, o processo do emplastro, da boleia ou do parasita, consoante a perspectiva de análise.

O processo da açorda consiste em amalgamar no plenário, num mesmo momento, os debates e votações na generalidade, especialidade e final global de leis com relevância, assim apagando a dignidade de cada tempo e a transparência pública do objecto da lei e das posições pró e contra e impedindo que o processo legislativo respire abertamente com a opinião pública.

Agora, em busca do projecto de lei do Partido Socialista para derrubar a lei de 2013 que permitiu restituir a nacionalidade aos judeus sefarditas descendentes dos expulsos no séc. XV, encontrei nas votações de Abril, em pleno estado de emergência, alguns casos que pareciam ser desse tipo. Não eram. Tratava-se de leis de urgência por causa da crise Covid-19, em que as três votações eram sequenciais ou simultâneas. Quer a urgência, quer o facto de muitas dessas leis terem apenas um preceito legislativo justificavam a anormalidade do procedimento.

O processo da açorda foi criado para tornear dificuldades políticas de leis controversas. Em vez de enfrentar a verdade do processo legislativo, levando os textos a aprovação ou reprovação na generalidade, inventou-se um ilusionismo: no termo do debate na generalidade, em vez desta votação, faz-se votar um requerimento para baixar tudo de novo à Comissão, normalmente por 90 dias fictícios. Ficam todos contentes, porque nenhum projecto foi reprovado; e cria-se a ilusão de todos terem sido aprovados. Não o foram, mas, com o tempo, a ilusão é uma nuvem que engrossa. Os tais 90 dias são sucessivamente prorrogados, por despacho ilegítimo do Presidente da Comissão, dado às vezes fora de prazo – um prazo fixado pelo plenário só o plenário poderia prorrogar. Dentro da Comissão, um punhado de deputados de diferentes partidos, reunidos em grupo de trabalho, fabricam laboriosamente a nova pizza, amassando a gosto os projectos pendentes e tentando construir um novo texto, afeiçoado a uma maioria de ocasião. Dizem trabalhar na “especialidade”, o que é legalmente impossível, uma vez que nada passara na generalidade. Se a ousada empresa não falece pelo caminho (o que por vezes sucede), o texto fabricado emerge, finalmente, no plenário para as três votações consecutivas: generalidade, especialidade e global final. Assunto arrumado. É uma grande fraude democrática. Esconde dos olhos do público, ainda por cima em matérias sensíveis, a verdade da formação da lei. As leis, em democracia, são para ser feitas no plenário, perante todos; não na sub-cave da sub-cave, um obscuro grupo de trabalho de uma comissão ou subcomissão.

Não encontrei nestes labirintos o projecto de lei anti-judaico dos deputados do PS. Onde estaria? Ao fim de mais buscas, achei-o noutra sub-cave: um grupo de trabalho da 1.ª Comissão, por ironia a comissão que se ocupa dos direitos, liberdades e garantias, além dos assuntos constitucionais. Como conseguiu o PS que uma medida legislativa que ninguém discutira, nem votara, cavalgasse um processo quase no fim? Fácil. A açorda não servia, porque o PS não apresentara projecto de lei e a votação na generalidade focara-se noutros ângulos que não o do PS. Avançou então outro truque: enxertar os bugalhos próprios nos alhos alheios. O abuso, qual emplastro, apanhou boleia dos projectos de PAN e PCP, aprovados na generalidade, e aí se instalou como parasita. É um expediente parlamentar, infelizmente frequente, usado para subtrair ao debate na generalidade ideias que, às claras, criariam embaraços. Na verdade, é de vergonha que uma ideia do PS, tão restritiva, injusta e discriminatória para os judeus portugueses, fosse posta a cavalo de projectos que ambos usam, em título, o verbo “alargar”.

Se o PS queria mesmo fazer isto, tinha de desdizer-se com lealdade perante todos, apresentando novo projecto de lei contra a Lei n.º 1/2013, aprovada por unanimidade em 31 de Maio desse ano. Não podia aparecer mascarado e clandestino por uma viela parlamentar para desferir, furtivamente, um ataque discriminatório e objectivamente anti-semita. Pior: abusou de presidir ao grupo de trabalho que montou tudo isto. A deputada Constança Urbano de Sousa, primeira subscritora da inaceitável proposta do PS, é a Presidente do grupo de trabalho onde tudo isto foi montado, contra a ética da Constituição, do Regimento e da lealdade democrática. Completa falta de independência.

O propósito destes truques – a açorda e o emplastro – é criar o facto consumado, que condicione toda a gente na hora de votar, a começar no próprio grupo parlamentar.

A proposta de Constança Urbano de Sousa e outros apresentou-se assustada com um alegado “aumento exponencial dos pedidos de naturalização por parte de judeus sefarditas”. E choca-se adicionalmente, de um modo (esperemos) impensado, com o “crescimento igualmente exponencial de pedidos de naturalização dos filhos e dos cônjuges”.

A proposta da deputada do PS para travar a adesão de judeus de origem portuguesa à lei de 2013 era impor um requisito prévio de residência em Portugal, o que era inteiramente estapafúrdio: primeiro, esse requisito era (e continuava a ser) dispensado nesse mesmo preceito, em linha com todos os casos similares consagrados, desde sempre, no mesmo artigo da lei; segundo, ignorava e desprezava as circunstâncias naturais destas comunidades a que estes regimes de naturalização se destinam – neste caso, tendo sido expulsos, os judeus portugueses tiveram que ir residir e trabalhar no estrangeiro. A desigualdade pretendida pelos deputados do PS apenas para os judeus, era chocante e inconstitucional.

O breve levantar do segredo em que isto se manobrava, por debaixo de um manto de silêncio e por detrás da Covid-19 (que afectou o movimento habitual do Parlamento), logo desencadeou fortes discordâncias e controvérsia. Os deputados do PS comprometidos com esta infeliz iniciativa tiveram de recuar, mas infelizmente insistem no erro: devem, de facto, ter alguma coisa contra os judeus e o melhor é que se expliquem. Segunda-feira à tarde, já com este meu artigo pronto, apresentaram uma proposta de alteração à proposta de alteração, em que apagam a exigência do requisito de residência e introduzem o requisito de “que possuam efectiva ligação à comunidade nacional.”  Escrevo, a este respeito, umas breves palavras.

A “ligação efectiva à comunidade nacional” é requisito geral da nossa lei, desde sempre, para qualquer aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, ou seja, aplica-se também à naturalização regulada no artigo 6º. Presumo que os deputados do PS conheçam a lei e saibam o que dispõe o artigo 9º. Ou seja, esta emenda da emenda não acrescenta nada e é, portanto, inteiramente supérflua. A menos que, com a especificidade para os judeus, os deputados socialistas queiram acrescentar alguma coisa que não explicam – se assim for, estarão a criar uma desigualdade apenas para os judeus, ou seja, contra estes, o que, além de moral e politicamente condenável, seria inconstitucional. A experiência destes anos mostra que são inúmeros os sefarditas reconstruíram por este processo e, na sequência da naturalização, uma calorosa ligação a Portugal, que tínhamos sido nós – não eles – a cortar, há cinco séculos.

O melhor é o PS deixar a lei de 2013 como está e não querer quebrar o consenso extraordinário que a rodeou, manchando a sua imagem partidária e o prestígio do país. Que país é esse que avança e recua, em cinco anos, numa lei desta sensibilidade e importância? Que país pisca-pisca, assim engasgado com a sua História, suscita respeito e confiabilidade?

Como já tive ocasião de escrever noutro artigo, a sede adequada para introduzir afinações no regime de naturalização é no regulamento e não na lei. A lei aguardou, aliás, a actualização do regulamento em 2015 para entrar em vigor. É no regulamento, em decreto-lei, que os problemas que, de facto, existam poderão ser devidamente considerados e resolvidos, incluindo quanto ao tempo processual e aos modos de considerar a previsão geral de “ligação efectiva à comunidade nacional”, como já sucede noutras situações específicas. As comunidades israelitas em Portugal sempre demonstraram disponibilidade para participar nesse diálogo, de modo criativo, responsável e honesto. O grupo parlamentar socialista fez muito mal em usar este processo do emplastro para se montar às cavalitas noutras iniciativas legislativas e encavalitar-lhe uma emenda à lei que não tem nada a ver com o objecto geral daquelas, nem foi minimamente coberta pelo debate na generalidade em plenário. É um movimento infeliz que foi recebido, pela sua impropriedade, como manifestação de má-fé e lançou um veneno muito difícil de corrigir: desconfiança. Só há uma solução: deixar cair. O governo, em sede regulamentar, poderá vir a tratar do assunto, esperemos que com competência.

A lei de 2013 visou expressamente – basta ouvir os debates – voar por cima de cinco séculos e repor os laços que haviam sido cortados com a expulsão. Reunir de novo onde antes se separou. É difícil saber quantos judeus sefarditas viveriam em Portugal. As estimativas que tenho como mais certas indicam 30.000, a que se somaram 60.000, metade dos expulsos de Espanha e que aqui se acolheram, no reinado de D. João II. Eram todos sefarditas, com relações entre si, anteriores aos reinos peninsulares que resultaram da Reconquista, entre os quais Portugal, o mais antigo. Pelo ano de 1500, a população portuguesa andava por 1.100.000 habitantes. Hoje, somos dez milhões. Se os descendentes dos sefarditas expulsos, que tiveram mesmo de sair, cresceram à mesma razão dos outros portugueses da época, estaremos a falar de um número necessariamente elevado.

Não podemos confundir o sucesso da lei com qualquer abuso, excesso ilegítimo ou fruto de negócio mercantil. Se os pedidos procedem de descendentes efectivos, em requerimentos consistentes e idóneos, nada haverá a dizer, a não ser: “Sejam bem-vindos de volta à vossa terra.” E é completamente obsceno querer impedir a aquisição da nacionalidade a cônjuge e filhos, na aplicação que lhes couber das normas da lei geral. Escandaliza ler isto, como num guardião de fronteira: “Tu entras, porque tem de ser. O teu cônjuge e os teus filhos ficam fora.”

Só onde houver abusos, oportunismos e manipulações, devem ser identificados e recusados. Para isso, não é preciso mudar a lei – não devemos fazê-lo, cavando desconfiança. Bastará melhor prática administrativa ou, talvez, depende dos problemas efectivamente encontrados, a melhoria do regulamento, isto é, do decreto-lei que rege a aplicação da lei.

Caberia fazer uma pergunta aos deputados do PS na origem desta questão: que fariam quanto a Aristides de Sousa Mendes? Apoiá-lo-iam? Ou estariam nos seus detractores como emissor de “vistos de conveniência” e porque produzira a “transformação deste processo num negócio”?

Dir-se-á que estou a ser demagogo, pois os judeus de Aristides fugiam do Holocausto. Bem sei. Mas, não sendo especialista, a ideia que tenho da História judaica é que o povo judeu é aquele mais marcado pela perseguição. Não conheço outro povo que, em diferentes épocas, em diversas gerações, em tantos lugares, tivesse de fugir, por causa de expulsões, perseguições, outros horrores inimagináveis. Podia perceber-se a razão disso. Nunca consegui entender. É algo completamente irracional. Não há razão, senão um preconceito rasteiro, que explode em ódio.

Não recai sobre nós – é claro – resolver tudo e expiar as culpas do mundo. Mas cabe-nos reparar o que é da nossa conta: enterrar o corte, refazer a relação como era nos nossos primeiros séculos até ao Édito de D. Manuel. Que venham quantos quiserem vir não nos faz mal, faz-nos bem. Pelas mesmas razões por que os historiadores apontam o grave erro nacional que foi a expulsão dos judeus, o futuro nos mostrará o extraordinário acerto da lei de 2013. O presente já o tem vindo a mostrar. Deixemos o coração trabalhar. Importa continuar e não interromper.

Não me sinto nada mal por os judeus de ancestralidade portuguesa sentirem, todos, que Portugal é sua casa e voltarem a sentir-se seguros aqui. Pelo contrário, sinto-me ainda mais orgulhoso de este ser o meu país. Para isso, é indispensável que, apenas cinco anos passados, não venham legisladores querer apagar o que havia sido dado sem prazo, nem limite. Não há nada pior para infundir desconfiança e, outra vez, medo. Não pode ser.

(Actualizado às 21h15 com referência às alterações introduzidas pelo PS ao seu projecto inicial.)

ADENDA EM NOTA FINAL: A deputada Constança Urbano de Sousa veio responder-me, de madrugada, na caixa de comentários ao artigo. Ainda bem que o fez. Apontou um erro que eu teria cometido, ao referir no texto que o artigo 9º da Lei da Nacionalidade, quando prevê “ligação efectiva à comunidade nacional”, já o previa como requisito geral, aplicável também a estes casos de naturalização. De facto, fiz esse erro, involuntariamente. Só lhe posso agradecer a oportunidade de o esclarecer.

Corre-se sempre o risco de errar, sobretudo quando se tem de responder a correr. Foi o que me aconteceu. Soube pelas 20h00 da última alteração do PS entrada à tarde, sobre a sua anterior proposta de alteração; e tive de reagir à mudança por um acrescento intercalado no meu texto, pelas 21h00.

Efectivamente, embora a naturalização resulte também da vontade dos requerentes e não directamente, por exemplo, do facto do seu nascimento, o regime do artigo 9º só se aplica aos modos de aquisição da nacionalidade inscritos na secção da lei que leva especificamente essa epígrafe: “Secção I – Aquisição da nacionalidade por efeito da vontade” (aquisição por filhos ou pelo cônjuge, arts. 2.º e 3.º). Ou seja, não se aplica à naturalização (art. 6.º) que consta de secção própria, a Secção III.

Já tinha dado por este erro, que não tivera possibilidade de corrigir, sem truncar o texto escrito e publicado. Planeei redigir uma adenda, a colocar nesta manhã. Respondi logo na caixa de comentários à deputada Constança Urbano de Sousa, cerca das 5:00 horas. Mas o sistema de revisão do jornal levou algum tempo a aceitar a minha resposta, que só ficou disponível em linha cerca das 10:00 horas. E avancei para esta adenda em nota final.

O comentário de Constança Urbano de Sousa mostra que a nova alteração da alteração não é, afinal, supérflua. Portanto, sobra todo o resto do problema, como, aliás, logo escrevi no texto do artigo. Os deputados do PS querem, na verdade, criar uma condição nova para opor unicamente aos descendentes de judeus expulsos e não a todos os outros casos de naturalização do artigo 6.º, n.º 6, que foi o regime de referência sobre o qual foi moldado o n.º 7, aplicável aos descendentes dos judeus sefarditas. A discriminação seria flagrante. Viria criar, inquestionavelmente, uma situação de desigualdade e discriminação, que merece todos os qualificativos que são comuns nestas circunstâncias.

Devolvo, por isso, inteiramente as acusações; e repudio as desinformações em que a deputada insiste no comentário que fez.

Do que a deputada escreve no comentário ressalta total desconsideração e desprezo pelo espírito e finalidade de reparação histórica da lei de 2013. O sucesso da lei foi esse e está posto debaixo de ataque, tão violento, quanto furtivo e ínvio.

Esta alteração do PS à sua própria alteração, metida uma vez mais à queima-roupa, na véspera do dia que consta ser o da votação, confirma a indignidade processual seguida para atingir e ferir uma lei aprovada por unanimidade na Assembleia. Se queria fazer isto, o PS tinha o dever de agir lealmente, com abertura e em modo democrático. O PS tinha o dever de, aquando do debate e votação na generalidade dos projectos de lei que seguiram para a especialidade, ter apresentado o seu próprio projecto sobre este tema ou, ao menos, indicar e fundamentar, no debate na generalidade, que o quereria vir a tratar na especialidade, como e porquê. O silêncio público às escondidas, o modo furtivo, por que a deputada agiu sempre, neste processo, é, além dos erros e discriminações inscritos na primeira e na segunda propostas do PS, o único responsável pelo mal-estar, pela profunda desconfiança e pela controvérsia que gerou, assim como pelos danos já produzidos.

Se os deputados do PS estão de boa-fé e visam apenas atalhar eventuais abusos ilegítimos que possam acontecer, reafirmo que não é preciso mexer na lei. Basta melhorar o regulamento, constante do Decreto-lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro. Essa é a sede adequada para afinar a definição regulamentar dos “requisitos objectivos comprovados de ligação a Portugal” que a própria lei JÁ hoje prescreve no n.º 7 do art. 6º, aplicável ao caso dos sefarditas.

Quanto a outras divagações feitas no seu comentário pela senhora deputada, a respeito de que a lei actual contempla todo e qualquer descendente dos expulsos (“que podem ser muçulmanos, cristãos, judeus, budistas ou não ter nenhuma religião” – fim de citação), é um absurdo. Esta, aparentemente, é que seria a preocupação da deputada e não alvejar os sefarditas, como todos viram. Ora, cabe recordar o seguinte: primeiro, não se conhece um único caso em que isso tenha acontecido, nem tal eventualidade foi alguma vez invocada e documentada pelos proponentes; segundo, a lei actual, no mesmo n.º 7, prescreve a “tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa”.  A ser necessário, o regulamento também poderá precisar melhor esta pertença.

A lei de 2013 foi melhor pensada e está mais bem feita do que Constança Urbano de Sousa alega. Por isso, foi tão bem recebida. Não deve ser estragada.

Assim como eu reconheci o meu erro involuntário, ao escrever à pressa sobre o artigo 9.º da lei, também o PS e a deputada Constança Urbano de Sousa deveriam reconhecer o seu erro: o de usarem um estratagema inadequado e impróprio para tratar, a martelo e à força, uma matéria legislativa da maior relevância política e histórica. Em democracia, as coisas não se fazem assim.

Por isso, o PS deve deixar cair este seu erro e permitir que quem sabe trate do assunto em modo adequado e na sede própria. A sede própria é o regulamento. Quem sabe é o governo – por sinal, o seu governo – em diálogo com as comunidades judaicas, como sempre aconteceu desde 2013. Nesta altura, é a única solução.

Só há uma forma segura de não se poder ser acusado de antissemitismo: é não discriminar contra judeus, em particular quando se trata de estragar uma lei de reparação histórica.