1 Vejo as imagens, revejo-as, confundo-me: vivemos aquilo, éramos assim? Simplesmente acreditávamos?
Ou resume-se tudo preguiçosamente a um “Ah, outros tempos…” ?
Falo de imagens marcantes que assinaram rupturas e evoco outras, agilmente sedutoras, que nos trouxeram a festa. Mas em ambas a marca “acreditar” é a mesma. As primeiras nasceram de um magnifico documentário da autoria de Alberta Marques Fernandes, apresentado há dias na RTP 1 sobre Conceição Monteiro, “A Militante número dois” (a ver e rever); as segundas chegaram-nos também televisivamente a propósito do aniversário da inauguração da Expo 98. Embora por razões de natureza muito distintas, há em ambos os casos, o mesmo selo de garantia: valia a pena acreditar.
2 Sim: acreditava-“se” e aqui o que menos importa é a dimensão do “se”. Francisco Sá Carneiro tinha fornecido ao país a promessa de outra coisa. Com uma convicção de aço – e igual energia – que transbordam das imagens. A verosimilhança política do que propunha, algo quase proibido no país pela “nomenclatura”, confundia-se porém com o que uma muito considerável parte dos portugueses percepcionava já (faltava-lhes era o porta voz): a indispensabilidade de uma ruptura através do “achamento” de um porto de abrigo não revolucionário, que acolhesse – e fortalecesse – uma democracia civilista ainda balbuciante, ainda tutelada. Assim em duas linhas parece pouco, foi imenso, ficaram sementes até hoje. Se nem sempre foram bem cuidadas é outra história, o que me interessa sublinhar é que houve quem – com êxito e em situação de puro cerco – deitou as sementes ao solo do centro e da direita, num tempo em que tal não se fazia: a direita era mais ou menos designada como culpada de existir… E as imagens (para além de revisitarem muito bem a colaboração ímpar de Conceição Monteiro com Sá Carneiro) são como um líquido apetecido, que vai escorrendo do documentário e apetece beber. Dos anos escaldantes de 74/75, até aos oitenta do século passado não se sabe o que reter, se o exemplo político, se a prova de que foi possível. Ambos, provavelmente.
3 Em 1998 éramos felizes e achávamos que nunca mais seríamos pobres: havia auto estradas, televisões privadas, festivais, descobriam-se “movidas”, liam-se muitos jornais, vinham estrangeiros, abriam restaurantes: o desenvolvimento do país, tanto (nesta) forma como na substância, era uma verdade. Levavamo-nos a sério. Aquela Expo era o farol cuja incandescência nos ampliava as certezas. E o sermos “da” Europa, certificava tudo. Derisoriamente ou não, acreditávamos.
4 Valerá a pena evocar “outros tempos” ou sequer interessa evocá-los? Não me parece, o exercício é ocioso. A “culpa” não é de ter havido melhores tempos, ou sequer de “acharmos” que eles existiram. Será antes do pouco que fazemos para recusar os anos baços de hoje, e nos comprometermos com outros. Desfazendo o novelo do empobrecimento sem contrabalanço algum (além das “contas certas”, ontem tão malditas, hoje tão benditas, tristes herdeiros).
Claro que há gente que ainda aplaude, gente sem queixas, há os concordantes, os fieis, os que insistirão. Têm esse direito. Claro que houve avanços, desenvolvimento, progressos, quem o contesta e aí estão os números. Mas e agora? Hoje? Um hoje que dura há tempo demais? Por mim quase me sinto uma “colaboracionista” – palavra temível. As coisas transformaram-se no que se transformaram graças (não sei se também, se sobretudo) à contemporização letárgica ou demissionária de muitos – muitos – com esse mesmíssimo estado de coisas. Acreditar politicamente em alguém ou alguma coisa – um ideal, um modelo, uma ideia, um ramo de propostas – deixou de fazer qualquer sentido. Para quê se há mais vida num mundo paralelo, despoluído da política? E no entanto… as sementes ficaram, o eco da voz também. Mas quem colherá umas e expressará a outra?
Ou seja, acreditar deixou de ser uma prioridade. Nos anos a que aludi, era quase o ar que se respirava.
5 Tudo isto me trouxe à memória uma frase do antiquíssimo Horácio que vi há dias citada num jornal estrangeiro: “toda a realidade ignorada prepara a sua vingança”. Se há algo de permanentemente ignorado, fingido ou manipulado de há muito até hoje, é obviamente a realidade. A nossa. Vingar-se-á ela um dia?
Havendo poucos gestos tão inúteis como chorar sobre leites derramados ou praticar saudosismos inférteis, preferiria assistir ao exercício (devia ser obrigatório) da vitória da realidade sobre a obsessiva ficção que a tem substituído.
Foi o que acabou de acontecer a Pedro Sánchez, nosso vizinho (mas felizmente não nuestro hermano): a realidade da qual ele foi um galante e deslizante manipulador, virou-lhe o dente. Diz-se que foi de vez mas a manipulação tem várias encarnações.
A única dúvida-delicada de tão pouco trivial – é a de saber se caso a nossa realidade venha um dia a revoltar-se contra a negação, a “vingança”, ainda virá a tempo. A tempo da única grande questão, a tempo do que começa a estar seriamente em causa: o regime ainda se regenera? Quando se bate no fundo já não há saídas de emergência. Mas uma coisa é certa: se o regime soçobrar também foi por minha responsabilidade.