São diversas as razões que me impedem de desfilar a cada 25 de Abril. A primeira é a aversão a manifestações públicas, para cúmulo colectivas. Se já é ridículo que uma pessoa se ache tão interessante a ponto de ter de expôr os seus sentimentos ao resto da humanidade, é duplamente patético que se sinta obrigada a fazê-lo em bando. Um sujeito sozinho aos berros nos Aliados ou no Rossio ainda merece algum respeito (e a atenção do INEM). Acompanhado por milhares de ociosos idênticos, não merece respeito nenhum.

O segundo motivo é o absurdo de comemorar datas. Incluindo a do meu aniversário, não conheço qualquer data digna de festejos ou baderna. Desde o início dos tempos que, de acordo com os paladares, diariamente acontecem tremores, bons, maus, terríveis, desmesurados, ínfimos, incompreensíveis e polémicos. Se sairmos à rua a “assinalar” todos, acabaremos exaustos, resfriados e com a taxa de produtividade do sindicalista médio. Além disso, não haverá trânsito que resista.

O terceiro motivo pelo qual não celebro “Abril” prende-se com o próprio “Abril”. Serei picuinhas, mas causar-me-ia certa impressão passear em prol da democracia junto de criaturas que sempre a combateram. Não querendo generalizar, o tradicional cortejo lisboeta é das maiores concentrações de intolerantes que o país é capaz de agrupar. E a toponímia é tão irónica quanto os propósitos: boa parte daquela gente “desce” a Avenida da Liberdade em nome de um conceito que lhe é fundamentalmente estranho. Por regra, os rostos reconhecíveis na romaria do 25/4 oscilam entre fanáticos de proibições, na melhor das hipóteses, e devotos de totalitarismos, na pior. Mesmo os que não idolatram abertamente tiranos célebres e obscuros entretêm-se a conceber interditos e calar “blasfémias”. É peculiar, por exemplo, que candidatos a censores se congratulem com o fim da censura. Ou que prepotentes naturais recordem com rancor a prepotência alheia. No fundo, eles descem a Liberdade porque não saberiam subi-la nem que tentassem.

Por estas e por outras (estas chegavam), o meu contacto com o 25 de Abril de 2018 limitou-se às cerimónias oficiais. Por diligência minha? Não endoideci. Sucede que o carro viera da revisão e estava sintonizado numa estação de rádio, meio que sinceramente julgava extinto. De repente, apanhei com a voz de uma senhora que evocava “o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres”. O meu impulso foi mudar a engenhoca para um disco de John Lee Hooker em que me ando a viciar. Porém, o humor retorcido que Deus me deu viu-se seduzido pelo descaramento de alguém que, a fim de emitir uma trivialidade embaraçosa, cita a figura em causa. Citar Gandhi ou Mandela é apenas aborrecido: citar o eng. Guterres revela um talento burlesco que me transforma num ouvinte atento.

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E atento ouvi a tal senhora falar no “tecto de vidro que impede as mulheres de chegarem aos lugares topo”, na “nova realidade” em que vivemos “porque decidimos [ela e os amigos] pôr fim à austeridade”, na dra. Pintasilgo (com um único “s”). A terminar, o cliché apoteótico: “Cumprir a democracia e viver a liberdade é evitar fraturas e conflitualidades entre jovens e idosos, entre empregados e desempregados, entre patrões e trabalhadores, entre o interior e o litoral. Cumprir a Democracia e viver a Liberdade é não deixar mais que nenhuma mulher seja agredida ou assassinada numa relação de intimidade”.

A senhora, soube depois, chama-se Elza (com “z”) Pais e é deputada do PS. Também soube depois que o portentoso vazio dessa retórica uniu a quase totalidade dos discursos, com a excepção do do dr. Ferro Rodrigues. O presidente do parlamento conseguiu ir além do vazio e aproveitou a oportunidade para defender os compinchas envolvidos em trafulhices demográficas. No final, alguns parlamentares, de florzinha ao peito, entoaram a “Grândola” fatal. Nas bancadas, os “capitães” abençoaram a eucaristia. Se se pudesse morrer de ridículo, teríamos tido uma chacina.

Aqui chegado, para evitar equívocos, esclareço não ser saudosista do salazarismo. Não aprecio regimes controlados por nacionalistas rústicos, inimigos do comércio livre, da propriedade privada, do direito à expressão, dos “desvios” à moral vigente e, em suma, da possibilidade de o indivíduo decidir estrafegar o seu destino conforme entender. Aliás, são esses os exactos motivos que me excluem da habitual discussão em volta da propriedade de “Abril”. Ano após ano, a nossa melancólica “direita” procura reivindicar uma herança de que a esquerda se apoderou e da qual me excluo sem remorsos. Por mim, podem ficar com os cravos, o “Zeca”, a gaivota, a aliança povo/MFA e restante folclore. Descontado o folclore, e à semelhança do Natal, “Abril” é o que um homem quiser. E os homens que o fizeram, primeiro, e os homens que o tomaram, de seguida, quiseram imensas e contraditórias coisas. Um protesto corporativo. Um golpe de Estado. Uma democracia à “europeia”. Um paraíso soviético. Um inferno cubano. Um manicómio. Somados os pesos e os contrapesos, sobrou-nos o meio termo. Se nos livrámos de trocar uma ditadura rançosa por uma ditadura sanguinária, não nos livrámos da propensão para o atraso de vida que nos tolhe há séculos.

Quarenta e quatro anos passados, estamos assim, dependentes, tolhidos, patriotas, tontos e entregues a uma casta renovável e sortida de burgessos com manha, cuja solitária habilidade é a de convencer-nos da justiça dos seus privilégios.

Celebrar isto? Vou ali e não volto, como diria o secretário-geral das Nações Unidas.