Ainda há portugueses que trabalham. David Dinis, director-adjunto do “Expresso”, leu o livro “Abril Pelas Direitas” inteirinho só para apurar quantos dos sessenta autores estão contra o 25 de Abril de 1974, quantos têm algumas reticências a propósito e quantos, no mínimo, se recusam a prestar à data uma cega e merecida vassalagem. Todos ou quase todos, conforme relata, naturalmente escandalizado, em artigo publicado esta semana naquele jornal. Incluindo eu, que não tendo produzido uma única letra para a obra em questão, fui incluído por David Dinis no rol de colaboradores da dita, com direito a fotografia ilustrativa do seu artigo. Depois da história do IRS, o “Expresso” volta a cair nas esparrelas da direita e, de modo involuntário, a enganar os seus leitores.

Aconteceu apenas que um dos organizadores do “Abril Pelas Direitas”, o Rodrigo Pereira Coutinho, pediu-me um texto para enfiar lá dentro, eu recusei fazer o texto (integro o estereótipo dos compatriotas preguiçosos) e o Rodrigo perguntou se, talvez aliviado ou em contrapartida, podia utilizar na contracapa uma frase minha (“Desconfio que não tenho os valores de Abril recomendados. Vou marcar análises”), graçola escrita não sei quando nem onde. Disse que sim, o bastante para ludibriar David Dinis e ver o meu nome equivocamente metido numa lista de inimigos da revolução e, mal regresse o saudoso PREC, num mandato em branco.

Ora não me apetece ser difamado nem terminar no Campo Pequeno. E a prova disso é que estou disposto a juntar-me a David Dinis e constituir-me delator oficial dos descrentes de tão sagrada data. Querem nomes? Para já, dou dois: Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes, duas cançonetistas, acho, as quais em reportagem que me apareceu no Twitter afirmam às claras que não seriam artistas se não tivesse havido o 25 de Abril. Nunca ouvira falar nas senhoras, e sobretudo nunca as ouvira cantar. Consultei o YouTube. Fugi apavorado após vinte segundos (dez por senhora). Concluí que ambas responsabilizam “Abril” pelas maiores ignomínias e isso não pode passar impune. Sugiro que o “Expresso” as adicione sem demora ao inventário de fascistas que anda a elaborar.

Acontece que o “Expresso” não brinca e, além do inventário à escala “micro”, com nomes e, espero, moradas, pratica igualmente a delação à escala “macro”. Para tal, encomendou uma sondagem que denuncia os fascistas em peso e com rigor estatístico. E anuncia na sua edição “on line”: “35% de quem diz que Portugal está pior do que na ditadura é simpatizante do Chega”. Faz sentido. Porém, apesar de bem-intencionado, o “Expresso” não nos impede de desconfiar que 65% de quem diz que Portugal está pior do que na ditadura não é simpatizante do Chega. É simpatizante do quê, então? Do PSD, o que também faz sentido. E, em doses semelhantes, do PS, um dado preocupante que justifica a discrição do “Expresso”. No total, um quinto da população, incluindo largos milhares de socialistas, insinua preferir o Estado Novo ao regime vigente, perversão que se resolve com pedagogia, devassa da vida privada, perseguição fiscal e investimento massivo em estabelecimentos prisionais.

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Mas nem tudo são más notícias. Noutra sondagem que se calhar é a mesma –adivinhem para qual semanário – o 25 de Abril é considerado a data “mais importante da história de Portugal” por dois em cada três cidadãos. Aqui não há fundações da nacionalidade, conquistas aos mouros, restaurações da independência, Marias da Fonte, vitórias do Benfica, a feijoada na ponte. O dia que conta é somente aquele dia, e assim é que deve ser. O texto que desenvolve tão feliz sentença – adivinhem qual o director-adjunto que o assinou – procura descansar as massas: “Os valores de Abril não só resistem como se reforçaram na última década”. 

Os “valores de Abril”. Entretanto, chegaram-me os resultados das análises: os valores estão óptimos e dentro do intervalo de referência. Sinto-me pois habilitado a juntar-me aos 66% de pessoas que, embora aparentemente tenham sumido a 10 de Março, se encontram disponíveis para assegurar que o 25 de Abril jamais será esquecido. Sendo novato nestas andanças, julgo que conheço as preces e domino os rituais. Vou encerrar qualquer discussão política, ou não política, com o imbatível argumento “Cala-te, facho!”. Vou dizer “facho”, “fascismo” e “facharia” várias vezes por frase, não importa se o assunto é a especulação imobiliária ou a melhor receita de bacalhau à Brás.

Vou usar cravo vermelho na lapela, no “perfil” do Facebook e no retrovisor do carro. Vou berrar a “Grândola” em espaços públicos à primeira, à segunda e à terceira oportunidades. Vou chamar Ponte 25 de Abril a todas as pontes que houver. Vou comprar o “Expresso”. Vou glorificar “Abril” por ter vencido o fascismo e abominar o fascismo por estar constantemente a interromper “Abril” (esta parte nunca percebi muito bem). Vou desrespeitar eleições que não respeitem a natureza profundamente democrática de “Abril”. Vou combater os inimigos de “Abril” nas ruas e, se chover, a partir do sofá de casa. “Vou viver “Abril”, sentir “Abril”, cheirar “Abril”. Vou iniciar uma petição para que os calendários fiquem parados no dia que importa, e que esse seja feriado eterno. O mundo começou aí e, com uns “pá!” do Otelo pelo meio, aí acabou. Não há mais nada, não pode haver mais nada. 25 de Abril sempre, sempre, sempre.