Toda uma semana a opinião pública foi inflamada pela discussão à volta das afirmações do Professor de Ciências da Comunicação Daniel Cardoso no programa da RTP, “Prós e Contras”. Perante a incredulidade da moderadora Fátima Campos Ferreira, o Doutorado afirmou que é uma violência obrigar crianças a beijar os avós e que com essa dinâmica de “poder” “estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro ou da outra, desde crianças”. Depois faz uma correlação desta educação e o comportamento futuro de violência sexual, dando o exemplo do controle do telemóvel no namoro.

Até gostei das afirmações anteriores deste professor quanto ao movimento #Metoo, o qual apoio e compreendo. O pior aconteceu com aquela afirmação. Como bem diz João Miguel Tavares, a correlação que o professor faz entre os beijos dos avós e os supostos hábitos prepotentes futuros dos miúdos é completamente disparatada e irracional. E sobretudo, vindo de quem faz ciência, supostamente. E porquê? Porque se trata de conselhos de boa educação, tão igual como a “ordem” de ajudar a mãe ou o pai nas tarefas de casa ou na “ordem” de fazer os trabalhos de casa.

Outras dinâmicas de poder parentais, essas sim nocivas, já para não falar nos abusos sexuais no ambiente familiar, âmbito em que mais ocorrem, são aquelas em que muitas vezes se é conivente com estes abusos. Como o Papa Francisco afirmou, muitas vezes encobriram-se abusos de padres porque também os pais não acreditaram nas crianças e colocaram-se as instituições acima. Também na Igreja, o cancro do clericalismo, como o mesmo apontou, ao colocar-se o poder à frente do serviço e os padres e bispos como intocáveis. Foi muitos anos a tratar as crianças como “estúpidas” e a não ouvir o que têm para dizer, foi não existir empatia em relação às suas emoções. Tudo isto é verdade, sem precisarmos de recorrer a Foucauld! De forma parecida, aconteceu com as mulheres, muitas vítimas de abuso, por dinâmicas de poder e porque não se acreditaram nos seus relatos.

E agora, por falar em beijos, aproveito para lançar um debate mais pertinente, a meu ver: a prática que é cada vez mais comum de beijar os filhos na boca. Não é isto uma violência? Mesmo que estes pareçam não demonstrar repulsa ou “consentirem” em tal? Esta prática não vai prejudicar a sexualidade saudável que terão estas crianças em adultos? Pode não existir essa intenção, mas sabemos se eles sequer consentem? Como vão reagir estes filhos, depois de crescidos, ao beijar alguém na boca com intenção romântica? Não é a boca uma zona erógena? Se não existe diferença entre dar um beijo na boca de um pai e de uma rapariga ou rapaz, que valor vão os nossos filhos dar ao erotismo? Porque não discutimos antes isto? Não será mais produtivo?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nunca a palavra “consentimento” esteve tão presente na nossa sociedade, desde o #Metoo ao novo RGPD (Regulamento geral de proteção de dados), o que é bastante bom, mas não quer dizer ainda que tudo o que eu queira seja bom ou, ainda, que uma criança pareça querer, seja bom. Também não é por termos filhos que julgamos que são “nossos” ou que lhes podemos fazer tudo ou que podemos domesticá-los a nosso bel-prazer. Ao darmos beijos na boca dos nossos filhos não estamos a banalizar a sua afetividade e sexualidade e a exercer uma forma de poder tóxico latente? Estes pais e mães, muitas vezes, eles próprios, parece que depositam fardos e carências emocionais nos próprios filhos. Quantas vezes tenho visto no meu facebook mães a afirmar que vão “namorar” com os filhos! Não é isto uma violência? Como é possível pactuar com esta atitude enraizada, num mundo sem pai e mãe, sem casais fortes e que se amam, em que se banalizou tanto o sexo que o erotismo morreu, em que pais e mães, com a sua ânsia de ser amados, sobrecarregam alguém que depende inteiramente deles e que não se pode defender? Como temos este debate inútil e não falamos no que devemos falar?

Essas relações de confiança entre pais ou encarregados de educação e os menores a seu cargo, isso é o que tem de se fomentar, relações de influência positiva e não de autoridade. De guarda e orientação mas não de posse. De guia mas não de chefe. De carinho, não de carência.

Prefiro Khalil Gibran a Foucault, em geral. Aqui vai um texto seu, e deixo uma homenagem a todos os pais que dão o que de melhor sabem pelos seus filhos:

 “Vossos filhos não são vossos filhos. 
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável”

Khalil Gibran, “O Profeta”.

António Pimenta de Brito formou-se em Língua e Cultura Portuguesa (língua estrangeira) pela FL-UL e depois fez um MBA em gestão, no ISEG-UL. Tem trabalhado em empresas nos últimos 12 anos. Fez formação em Comunicação na Harvard Kennedy School e na European Dignity Watch, em Bruxelas. Recentemente tornou-se empreendedor e docente ao criar a primeira Pós-Graduação em Portugal em Gestão de Organizações Religiosas, no ISEG-UL e é atualmente corresponsável pelo site internacional em língua portuguesa, fundado na Áustria, www.datescatolicos.org, dá palestras e escreve sobre o tema das relações e casamento.