Vá lá Deus saber porquê, a pergunta “O que fizeste durante as férias?” costuma ter uma resposta muito diferente da pergunta que normalmente a antecede por um mês: “O que é que vais fazer nestas férias?”. Espero que este desencontro não se passe só comigo, até porque é sempre bom saber que a nossa experiência coincide, pelo menos nos seus traços gerais, com a do resto da humanidade, para o bem e para o mal.
De qualquer maneira, o mais seguro é passar imediatamente para o plano do universal. Aí a pergunta é diferente: “Para que é que servem as férias?”. Longe das incertezas do real, a doutrina surge fácil. Servem para escolher as nossas companhias. O que obviamente obriga a, além da decisão sobre o que há de mais conveniente a explorar, uma forte vigilância que nos permita detectar tudo o que há a excluir, a recusar.
Ora vamos por ordem.
Cinema. Estas férias vão ser dedicadas à revisitação dos dois únicos realizadores europeus (sublinho: europeus; deixo de lado os americanos, que são muitos mais) ainda em actividade durante a minha juventude que me pareciam grandes: Bergman e Fellini. Por acaso, já comecei com Bergman. E a surpresa, se é surpresa, é óptima. É admirável dos primeiros aos últimos filmes. O mais óbvio: aqueles rostos que habitam os seus filmes saem da noite do mundo, do fundo dos tempos, como uma verdade assombradora. Mesmo antes de Liv Ullmann, que parece ter sido criada expressamente para esse efeito, aparecer. Além disso, Bergman tinha um talento extraordinário para os diálogos, provavelmente a coisa mais difícil de escrever no mundo. Bergman lida directamente, à sua maneira, com aquilo que, nos melhores dos outros, é apenas indirectamente referido. O sexo, a incomunicabilidade, a morte. O que talvez seja, no limite, a melhor solução, mas a forma como Bergman vai directamente aí é magistral, e encontra-se longíssimo dos exercícios normalmente pedantes e chatos que à sua sombra pulularam.
Leituras. Uma das grandes desgraças da minha vida, uma desgraça que dura há mais tempo do que eu queria, é a pouca vontade para ler romances. Com livros de história é diferente e mais fácil. Mas é como se a minha energia para acreditar, indispensável em matéria romanesca, tivesse diminuído drasticamente. Felizmente, ela existe. Gosta de ler e lê muito, com prazer, muito bem, maravilhosamente. Empresto-lhe os livros que me apetecia reler e ela depois fala-me deles. Descobre coisas de que eu me tinha esquecido ou em que não tinha nunca reparado. E os livros surgem-me mais vivos, os personagens mais reais, do que se fosse eu a reler. Tem sido uma das minhas boas, grandes e imerecidas felicidades. Mas, mesmo assim, vou ver se arranjo maneira de quebrar o enguiço. E até já tenho uma ideia. Voltar aos romances de aventuras de Rafael Sabatini (Scaramouche, The Sea-Hawk, e por aí adiante). Talvez funcione.
Música. Por puro acaso, voltei a ouvir Brassens no outro dia. Não é que me tivesse esquecido de como gostava, mas apetece-me voltar a fazer dele uma companhia. Há um acerto miraculoso entre as palavras e a maneira como as canta. Sem excessivo respeito pelos bons costumes das pessoas sérias, les braves gens (La mauvaise réputation), e com uma ternura muito real, mas sem vestígio nenhum de exibição de bons sentimentos, pelos indiferentes à sociedade, como os jovens namorados de Les amoureux des bancs publics. Além, é claro, de uma desconfiança absoluta por relação às ideologias (Mourir pour des idées). Um velho amigo, este Georges.
Piscina. Os corpos devem ter sido feitos para voltarem ritualmente à água, de tempos a tempos. Os heliotropismos sem água à beira não fazem sentido. Felizmente há um hotel em Esposende que é boa companhia, com uma magnífica piscina protegida da nortada. E o céu azul sobre a água azul faz maravilhas. Além de tudo, Esposende é uma terra verdadeiramente simpática.
Trabalho. Agosto é o único mês do ano em que se pode pôr, pelo menos em parte, o trabalho atrasado em dia. Mas, como em tudo, há regras que têm de ser cumpridas. E a principal é concentrarmo-nos apenas num único atraso. Não passar o tempo, por exemplo, a acabar várias prosas deixadas a meio. A não ser assim, Agosto é um mês perdido. E, de qualquer maneira, certo tipo de atrasos fazem parte da vida: não vale a pena lutar contra eles. Temos é de aprender a viver com isso.
Televisão. Aqui, não é nunca demais o cuidado a pôr na exclusão. No outro dia, para dar um exemplo, passei a tarde a assistir ao debate sobre o Estado da Nação. E ainda não recuperei do espectáculo da repugnante soberba jocosa do poder de Carlos César e de António Costa, nem daquela coisa esquisita que é a maneira de pensar da Catarina. Mas os exemplos abundam. Dei um enérgico pulo quando Éder marcou o golo à França e até descobri em mim uma simpatia, que por inteiro ignorava, por Ronaldo. E os dias e dias de celebração televisiva do feito da selecção pareceram-me na previsível ordem das coisas (ninguém é obrigado a ver televisão). Agora, a visão repetida de Marcelo e de Costa por aquelas bandas roçou o grotesco. Lembram-se daquele adepto do Futebol Clube do Porto (por acaso, o meu clube) que não perde uma oportunidade, nas transmissões televisivas dos jogos de futebol, para aparecer com um sorriso, digamos, abstracto, por detrás do jornalista? “Emplastro”, chamam-lhe. O Europeu de Futebol deu-nos direito a um novo emplastro, particularmente monstruoso, um emplastro bicéfalo: Marcelo-Costa. E além disso, ao contrário do outro, muito falante. Uma companhia a evitar, decididamente. Mas mesmo a televisão tem coisas boas. A Volta à França é uma delas. Chris Froome parece estar de novo em grande forma. E as paisagens francesas são lindas de morrer. Levam-nos para longe do império do grotesco.
Nestas férias, a regra de oiro vai mesmo ser: longe, longe, do império do grotesco. Agosto vai-me servir para isso. Espero que vos sirva também.