As férias estão quase a chegar, e desta vez pode ser que sejam mais ou menos férias a sério. Pelo menos os preparativos vão pelo bom caminho. E não me refiro certamente ao tempo passado em frente à televisão por causa da Copa. Não que eu não goste de futebol (gosto) e que não tenha visto o maior número possível de jogos (vi). O problema é que, mais ainda que das vezes anteriores, me apanho num estado de grande indiferença sobre quem perde e ganha e incapaz de verdadeiramente “ser por” qualquer equipa com a energia que dantes tinha. Devo andar com muito medo de sofrer.

Pior: mal começa a perder uma equipa, que até pode ser aquela que vagamente prefiro que ganhe, passo a ser automaticamente pela outra, e até a desejar, com requintes de sadismo, uma valente cabazada (o Brasil-Alemanha satisfez-me plenamente desse ponto de vista). Pior ainda: como se o sadismo não fosse já mal suficiente, apanho-me, qual um “inocente de coração puro”, em momentos de heróico cristianismo, com grandes sentimentos de compaixão para com as almas doridas dos derrotados, sentimentos que mereceriam quase um lugar no Parsifal. Por outras palavras: o meu espírito anda, à custa do Mundial, a flutuar incessantemente entre paixões contraditórias e pouco recomendáveis.

Estas coisas devem-se evitar. Mas, como escreveu um sábio, calamitas virtutis occasio est, que é como quem diz: nas situações difíceis é que se vê quem somos. É assim nas grandes humilhações, das quais desde a semana passada me tornei especialista, e é assim também quando a alma, torturada, não encontra repouso. Felizmente, logo vi a solução, e, tomado de virtude, corri a uma estante, em direcção às obras completas de Hergé. Isso sim, isso é a tal preparação das férias.

A chamada “cultura popular” produziu algumas obras memoráveis ao longo do século XX, mas, com a eventual excepção dos Beatles, confesso que nenhuma daquelas que afectaram directamente a minha geração me parece tão extraordinária como a de Hergé, nomeadamente as aventuras de Tintim. As coisas da cultura popular têm sobretudo aquilo que poderíamos chamar um valor aderente. Isso é particularmente evidente na música pop. Associamos uma canção a uma pessoa, um lugar, um tempo. Se a voltamos a ouvir são essas pessoas, lugares ou tempos, aos quais a canção aderiu, que voltam até nós, e o valor da canção reside sobretudo nisso. O sentimento da “primeira vez” não se repete, cada escuta reenvia para uma primeira vez passada. Não acontece assim com a grande música. Podemos ouvir pela milésima vez a Paixão segundo Mateus de Bach e, de uma certa maneira, cada vez é a primeira vez. Há um mundo inteiro que se descobre mais uma vez a nós pela primeira vez, um mundo totalmente independente das nossas pessoas, tempos e lugares.

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Longe de mim a ideia absurda de comparar Hergé a Bach, mas Hergé, à sua maneira, conseguiu também ele criar um mundo independente de qualquer aderência biográfica. De certo modo, descobrimos Hergé sempre pela primeira vez, por mais que conheçamos de cor (é o meu caso) todos os quadradinhos dos seus livros, alguns de uma beleza enorme ou de uma inquietante estranheza (várias imagens de sonhos, ou o faquir de O Lótus Azul, por exemplo). Descobrimos de novo os diálogos, em que Hergé é magistral. Descobrimos de novo os personagens e as situações. E a narrativa, por vezes brilhante, e, no início, muito devedora ao cinema americano. As Jóias da Castafiore é o ponto máximo, mas há muito mais. A primeira página de Carvão no Porão é um golpe de génio, bem como o fim de O Ouro Negro, em que o capitão Haddock tenta explicar várias vezes a Tintim como ali inverosimilmente chegou para o salvar, sem nunca o conseguir fazer e sem nós sabermos como o fez.

A inteligência do homem é fascinante, coisa que, de resto, as suas entrevistas tornam claro. Como por exemplo, quando comenta a génese de Serafim Lampião. Uma vez, em Bruxelas, um vendedor ambulante entrou-lhe pela casa dentro. Hergé conduziu-o à sala, e o vendedor disse-lhe, apontando-lhe o seu próprio sofá: “Mas sente-se, sente-se!”. Vale a pena ler o que diz. Dá na perfeição “o importuno em todo o seu esplendor”.

Começou “reaccionário”, acabou mais ou menos “progressista”, mas nem uma coisa ou outra afectaram minimamente a sua obra. (No fundo, talvez tenha sido sempre um conservador.) Pairou sempre por cima disso, e por isso os seus livros fornecem, como as obras de arte, uma compreensão indirecta do real. Quem não teve já, num restaurante, vontade de estrangular um pequeno Abdallah? Conhecemos, no nosso mundo banal, Serafim Lampião e Oliveira da Figueira. Até, com um bocado de sorte, um Rastapopoulos qualquer, ou o General Alcazar ou Bianca Castafiore, o Rouxinol Milanês. A América do Sul de A Orelha Quebrada – que desenhos! – revela-nos ainda hoje muito da região (“Viva a liberdade! Morte aos tiranos!”) e a Bordúria d’O Ceptro de Ottokar e de O Caso Tournesol põe em jogo, sucessivamente, fascismo e comunismo.
Mas, mais surpreendente ainda do que os desenhos ou a qualidade do texto e da narrativa, o que é mais raro, e quase miraculoso, é a sobrenatural adequação de um aspecto e de outro. A legibilidade das aventuras de Tintim vem dessa adequação perfeita. As palavras colam com as imagens e as imagens com as palavras. Umas pedem as outras. Parecem ambas duas expressões diferentes, mas necessariamente conjuntas, de uma realidade que se encontra para além delas, como também as personagens parecem necessitar umas das outras, como se fizessem parte de um mundo em que, por um decreto divino, tivessem todas sido criadas simultaneamente com a obrigação de se relacionarem entre si.

Tudo isto nos faz sair do nosso tempo próprio e torna-se um objecto de contemplação. Isso traz paz e repouso, o contrário exacto da irritação que a oscilação da mente provoca. Desirrita, se a palavra existisse. Entramos noutro mundo sempre de novo pela primeira vez. Um mundo ao avesso de bom número das correcções contemporâneas, para as quais é, em larga medida, incomportável. A ajuda que o amigo Hergé dá em certos momentos da vida… As férias vêm aí.

Dito isto, é certo e seguro que logo à noite (escrevo quarta-feira) vou ver o Holanda-Argentina. Espero que a Holanda ganhe, a não ser que ganhe a Argentina. E amanhã decido quem espero que ganhe a final, embora só decida definitivamente depois de ela acabar. À minha maneira, e tirando um dia ou outro, sou um sábio.