A queda de Cabul na mão dos talibãs ocorreu muito mais rapidamente do que muitos previam. A saída das tropas norte-americanas do Afeganistão mais se assemelhou à fuga delas do Vietname do que a uma retirada programada e ordeira. Um péssimo serviço ao combate contra o terrorismo e a criação de um perigoso foco de instabilidade na Ásia Central, que se poderá repercutir noutras regiões do planeta.
É um facto que um grupo extremista islâmico obrigou as tropas dos Estados Unidos e da NATO a retirarem-se apressadamente do Afeganistão. Se os talibãs conseguiram isso, porque é que outros movimentos radicais não conseguirão o mesmo noutros países islâmicos? Este exemplo pode ser ainda mais contagioso entre as camadas jovens, as mais atingidas pelo desemprego, a corrupção e a falta de perspetivas nos seus países.
No que à União Europeia diz respeito, o gravíssimo erro estratégico norte-americano e da NATO poderá reanimar ondas de atentados terroristas e de imigração ilegal.
No próprio Afeganistão, os Estados Unidos e a NATO traíram aqueles que confiaram na sua política e, agora, são abandonados à sua sorte, que não deverá ser nada invejável. Os talibãs, não obstante todas as promessas, já deram provas suficientes de fanatismo, intolerância e de vingança medieval.
Washington e os seus aliados ocidentais poderiam ter dado alguns passos com vista a impedir o regresso dos talibãs ao poder: pressionar o Paquistão a deixar de ser campo de treino dos terroristas afegãos e a cortar-lhes o apoio logístico ou a criar uma elite e instituições políticas e militares capazes de governar o país. Tiveram 20 anos para fazer isso, mas pouco ou nada foi realizado.
O desastre militar norte-americano e da NATO no Afeganistão vem dar novos argumentos aos países que desafiam o poderio dos Estados Unidos no campo internacional, como é o caso da Rússia e da China. Moscovo tem razões para se regozijar e não esconde esse sentimento. As razões para isso são duas: os Estados Unidos enfraquecem fortemente as suas posições na Ásia Central, região que a Rússia considera fazer parte da sua zona de influência. A segunda, consideram os dirigentes russos, é que a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão é mais um exemplo do fracasso da política de “unipolarismo” e da necessidade da Rússia de reforçar a sua política e presença no campo internacional.
As razões da China não deverão divergir muito das do Kremlin, sendo também semelhantes os receios quanto ao desenrolar da situação. Nem chineses nem russos têm a certeza de que os talibãs e outros grupos extremistas armados afegãos não pretendem fazer transbordar o conflito para lá das fronteiras do Afeganistão. Pequim teme que os extremistas afegãos possam incentivar o separatismo e a luta armada em Xinjiang, região onde os muçulmanos constituem a maioria da população e são vítimas de graves perseguições por parte das autoridades comunistas chinesas.
A Rússia vai concentrar os seus esforços para que os movimentos armados radicais não se infiltrem em países como a Quirguízia, Tadjiquistão, Uzbequistão e Cazaquistão e, daí, nas regiões muçulmanas da Federação da
Rússia. Para evitar esses cenários, as diplomacias de Moscovo e Pequim, andam, há muito tempo, a “namorar” os talibãs, receberam os mais altos responsáveis de uma organização cujo nome, por exemplo, na Rússia, só pode ser pronunciado acompanhado da definição “grupo terrorista”. Deste modo, russos e chineses legitimizam os “barbudos afegãos” na esperança de que estes controlem a situação no Afeganistão, contribuam na luta contra o terrorismo e o tráfico de droga na região.
Porém, esta será uma tarefa colossal tendo em conta os problemas étnicos e políticos no Afeganistão. Alguns analistas chamam a atenção para o facto de não haver unidade mesmo no seio dos talibãs. Se os “velhos talibãs”, cansados de décadas de guerra, podem aceitar as propostas russas e chinesas, os “novos talibãs” querem continuar a luta sagrada contra os infiéis e levá-la a novos territórios. Os talibãs não são a única organização terrorista a lutar no Afeganistão.
Na Rússia são muitos os que receiam que o seu país se possa envolver num conflito armado e recordam a triste e desastrosa experiência da direção comunista, que decidiu ocupar militarmente o Afeganistão e teve de se retirar dez anos depois.
Não se pode excluir a possibilidade maquiavélica de os Estados Unidos terem abandonado tão rapidamente o Afeganistão para provocar uma forte dor de cabeça a russos e chineses. Estes terão de resolver os problemas que os Estados Unidos e a NATO não conseguiram.
Duvido que líderes americanos como George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump ou Joe Biden tenham lido “Cartas de Inglaterra” de Eça de Queirós, mas, como ele escreve que “a História é uma velhota que se repete sem cessar”, aconselho a que as embaixadas da Rússia e da China enviem urgentemente traduções para os seus dirigentes. O texto da carta sobre o Afeganistão é breve, mas muito instrutivo.