À medida que os Estados Unidos e a NATO retiram as suas tropas do território do Afeganistão, a ofensiva dos talibãs e de outros grupos radicais  aumenta e tornou-se já claro que a intervenção ocidental nesse país não permitiu deixar estruturas governamentais capazes de resistir por muito tempo.

Aliás, esta retirada faz lembrar a saída inglória das tropas soviéticas do Afeganistão em 1989. Os rebeldes afegãos não respeitaram os acordos firmados com Moscovo, lançaram-se rapidamente numa feroz luta pelo poder, obrigando Mohammad Najibullah, então presidente do país, a refugiar-se na representação das Nações Unidas em Cabul. Em 1997, quando os talibãs, então o grupo mais radical islâmico, tomaram a capital, prenderam Najibulhab, castraram-no e enforcaram-no publicamente. Depois, impuseram no país um dos regimes mais violentos e repressivos.

Desta vez, os americanos parecem ter um plano para salvar o actual presidente afegão, Ashraf Ghani, mas deixam o país entregue às forças mais retrógradas e fundamentalistas.

Vassily Kravtzov, antigo agente dos serviços secretos e diplomata russo que trabalhou muitos anos no Afeganistão, atribui a falta de resistência por parte das forças armadas afegãs, face aos talibãs e a outros grupos extremistas, ao falhanço norte-americano na formação das tropas de Cabul: “O Pentágono organizou tudo como se estivesse em casa, considerando o seu sistema o mais eficaz. Trata-se, em primeiro lugar, do sistema de contratação dos militares sem qualquer tipo de ideologia, sem ter em conta os interesses do povo e do Estado. Desse modo, os afegãos transformaram-se numa espécie de mercenários no seu próprio país. E este é um momento muito delicado.”

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“Em segundo lugar”, continua Kravtzov no artigo “A escuridão avança sobre o Afeganistão”, publicado na jornal Novaya Gazeta, nas tropas afegãs não foram criados quaisquer órgãos políticos. Realizaram o princípio “forças armadas fora da política e da ideologia”… Em terceiro lugar, tal como no Pentágono, nas forças armadas afegãs não existem órgãos de contra-espionagem e de segurança militares, independentes do ministério da Defesa e do Estado-Maior. Foi sempre sua tarefa o acompanhamento dos processos nas tropas e em unidades militares concretas.”

Além disso, a forma como está a ser retirado o contingente militar dos Estados Unidos e da NATO contribui para uma desmoralização rápida dos soldados e oficiais afegãos. Por exemplo, Washington ordenou a saída dos seus homens da base aérea de Bagram durante a noite e sem informar Cabul.

“Presente envenenado” para a Rússia e China?

Tentando salvar a vida durante a ofensiva lançada no norte do Afeganistão pela coligação constituída por combatentes dos talibãs, da Al-Qaeda e do Estado Islâmico de Khorasan, milhares de soldados e guardas fronteiriços afegãos rendem-se aos grupos extremistas ou atravessam as fronteiras do Afeganistão e do Uzbequistão, fazendo recear uma onda de refugiados e a passagem do conflito para esses dois países – e daqui para toda a Ásia Central.

Como é sabido, a Rússia considera a Ásia Central uma das suas zonas de influência e promete garantir a segurança dos seus aliados na região através da Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC), que reúne a Arménia, Bielorrússia, Quirguízia, Rússia e Tadjiquistão.

Esta organização tem no seu tratado o artigo n.º4, que garante o apoio militar dos membros caso um deles seja atacado. Quando da guerra entre a Arménia e o Azerbaijão em torno de Nagorno-Karabakh, Erevan pediu o accionamento desse artigo, mas isso não foi feito, porque o conflito tinha lugar em território azeri ocupado pelos arménios. A seguir, registaram-se confrontos militares entre dois dos membros da organização: Tadjiquistão e Quirguízia, mas a organização também não arriscou intervir. Por isso, é difícil ter uma ideia mais ou menos clara da capacidade militar da OTSC.

Há dois anos atrás, Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, defendia: “O conflito no Afeganistão não tem solução militar. A única via de normalização é conseguir a paz através de meios político-diplomáticos. Defendemos a retirada total de tropas estrangeiras do país.”

Esta afirmação baseia-se numa suposição dos dirigentes russos de que, não obstante as forças da oposição ao regime de Cabul terem lançado ofensivas de vulto junto às fronteiras com o Tadjiquistão e o Uzbequistão, os talibãs não tencionam atacar os países vizinhos. A julgar pelas declarações dos diplomatas russos pode-se supor que exista um acordo entre Moscovo e os talibãs, conseguido em conversações secretas ou abertas entre eles.

Os dirigentes russos suavizaram significativamente o seu discurso em relação aos talibãs e Lavrov acusa o presidente Ghani de travar o diálogo com eles, acrescentando que isso permite ao exército islâmico ocupar territórios, antes de mais, no norte do Afeganistão, precisamente nas fronteiras dos países que são nossos aliados.”

Opinião diferente tem o general bielorrusso Stanislav Zas, secretário-geral da OTSC: “Eu vi-os em Abril ao vivo através dos binóculos no rio Piandj… Eles estão todos vestidos de negro, têm pontos militares por toda a parte.”

Os talibãs poderão não arriscar atacar os países vizinhos, mas neste caso, Arkadi Dubnov, analista político que conhece bem a Ásia Central, levanta uma série de questões: os talibãs “receiam a consolidação das etnias étnicas do Afeganistão, dos tadjiques, uzbeques, turcomenos, que no Norte são precisamente a maioria? Tentarão impedir que lhes sejam fornecidas armas a partir dos países vizinhos da Ásia Central ou da Rússia? Quererão conservar a integridade do Afeganistão e resistir aos planos separatistas dos chefes do Norte? Tentarão defender a fronteira para serem eles a controlar o tráfico de droga?

É difícil responder a estas perguntas, mas os dirigentes dos países que fazem fronteira com o Afeganistão na Ásia Central – Tadjiquistão, Turcoménia, Uzbequistão e China – preparam-se para o pior, pois receiam que grupos de radicais islâmicos possam tentar levar o conflito a toda a região e desestabilizar a situação. O líder tadjique Emomali Rahmon já pediu ajuda à OTSC e o presidente russo Vladimir Putin respondeu positivamente.

Pequim também está certamente atenta ao desenrolar dos acontecimentos, pois o Afeganistão é a base do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, cujos guerrilheiros lutam pela separação da região autónoma de Xijiang da China.

Como Moscovo e Pequim se opõem à instalação de bases norte-americanas ou da NATO na região, terão de ser russos e chineses a carregar o fardo mais pesado caso a guerra do Afeganistão salte para além das fronteiras afegãs.

Num artigo recentemente publicado por Serguei Lavrov, ele escreve: “O Ocidente colectivo histórico, que dominou sobre todos durante 500 anos, não pode deixar de ter consciência que essa época passou irremediavelmente ao passado, mas ele pretende manter as posições que lhe escapam, travando artificialmente o processo objectivo da formação de um mundo policêntrico.”

A acção dos Estados Unidos e da NATO no Afeganistão falhou redondamente e surge uma oportunidade para Moscovo e Pequim, separados ou juntos, demonstrarem a verdade da tese do chefe da diplomacia russa.