Entre a marcha do Grupo Wagner sobre Moscovo e as extraordinárias competências europeias de António Costa já foi tudo dito e escrito ao longo da semana. E sobre Prigozhhin e o Kremlin, as relações entre ambos e as consequências para um e para outro, tudo foi dito e escrito em várias línguas e em sucessivas actualizações – deixo-vos o belíssimo texto de Timothy Snyder. Talvez por isto, pela saturação de informação sobre tais assuntos, aos quais havia planeado acrescentar na crónica desta semana, ontem, ao passar de carro pelo alto do Parque Eduardo VII, já sem vista por causa do tapume – imagino que a proteger da obra para as Jornadas Mundiais da Juventude – a atenção fugiu-me e pensei: mas que jeito dava uma crise de fé.

As palavras são como as cerejas e as associações também. Lembrei-me das crises de misticismo da minha infância e de como delas surgiu sempre a dúvida e a crise de fé – já Jung advertia que as grandes verdades são paradoxais. A primeira das crises, e a mais exuberante, foi na terceira classe. Conto.

Mas antes. As crianças têm muitas vezes uma costela teatreira. Não tem nada a ver com talento ou qualquer outra competência da digna arte de Talma. Faz parte da natureza exploratória da infância esta dramatização da realidade e os pais, com excepção dos menos avisados, não ficam a pensar que lhes encarnou nos filhos o espírito do supra-citado François-Joseph nem o de Sarah Bernhardt.

Ora, algures lá pelo meio da terceira classe tive um ataque de misticismo. Para a minha anti-clerical avó, a mesma que me havia enfiado no colégio de freiras, seria uma coisa da natureza dos ataques de paludismo, ou de outro ismo qualquer de que se conhecesse a existência, mas não fosse aplicável ao nosso clima, perdão, à nossa vida lá de casa.

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Discreta, como sempre fui ao longo da infância, planava pelos corredores numa suavidade nunca antes vista, de olhos a fixar os candeeiros do tecto, mãos postas e, por absoluta inspiração, de toalha de rosto a cobrir os cabelos já numa antecipação de convento.

Após uma retórica indagação, «que despropósito é esse? Vá já por a toalha na casa de banho!» fui sumariamente ignorada nas explicações «avó, espere, não posso, estou a ensaiar para ser freira, é obrigatório usar véu…» Este desconhecimento e desprezo básicos das regras conventuais mostravam muito bem que o despropósito não era meu. Porém não podia argumentar: tinha de ser boa e responder pausadamente como convinha ao meu novo estado religioso. Este estado era, aliás, de grande exigência. Um mundo de proibições auto-infligidas: não correr; não andar aos saltos; fazer o sacrifício de não andar de bicicleta; não cantar pela casa as canções dos Gemini com coreografia em tempo real. Pior. Falar de um jeito monocórdico-santíssimo – fui eu que o inventei, é certo, mas estava a dar cabo de mim. Contudo tinha de ser para me preparar para uma longa vida de sacrifícios e abnegação.

A coisa arrastava-se. Um dia. Dois. Uma semana. Rezava de joelhos ao lado da cama, de preferência se alguém estivesse a ver. Não por exibicionismo, Deus me livre, que ideia de pecador, era só para mostrar a seriedade da minha vocação. E assim mesmo, nada, silêncio, nem um eco dos descrentes. «Pagãos, bezerro de ouro e mais não sei o quê!» Tornou-se rotina. Chegava a casa, punha o véu-toalha, ficava tão boa quanto a imaginação me permitia conceber uma bondade bíblica de Novo Testamento e… aborrecia-me. «A Madre Superior quer que faça alguma coisa, posso ajudar?» «Já te avisei para não me chamares Madre Superior. Mau, mau!» Perigo Danger Danger. O terrível dois em um: ser tratada por tu e palavras chave em modo repeat. Era tão perigoso o «mau, mau» com prolongamento do último «au», quanto o «bom, bom» com o último «om» a descer para graves de barítono. A falta de discriminação entre as duas avaliações repetidas de natureza antagónica e aleatória, «bom-bom/mau-mau», nunca me deixou em dúvida sobre o desfecho: aproximava-se o fim das advertências, ou seja, o castigo.

A minha avó, ao contrário da minha mãe, tinha sérias reservas quanto à utilização da pedagogia mais recente. Socorria-se muito de milenares técnicas de persuasão: «Porquê? Mas que desplante, porque sim, porque eu mandei.» Por isso, foi com grande surpresa que, estando já farta do drama religioso, a ouvi dizer à minha mãe: «Se a minha neta quiser ser freira, que grande desgosto me dá, pior só se fosse dançarina de cabaret. A menos que Deus exista, aí o caso já é diferente.»

Este embate de informações exigia que me sentasse. Terríveis e apocalípticas revelações. A saber: ser freira e ser dançarina de cabaret não eram formas desejáveis de estar na vida – cabaret, ora bem, haveria de ser qualquer coisa da ordem de um café, mas com música, mais escuro e com mais fumo, como nos livros do Lucky Luke. E pelos vistos, dançarina não era a mesma coisa que bailarina porque eu andava no ballet há três anos e isso era aprovado. Mas a grande, grande bomba era Deus ser opcional. A verdade não ser, portanto, absoluta. Deus, que eu conhecia de tu cá tu lá, ou mais propriamente de o Senhor aí em cima, cheio de poder, e eu cá em baixo com um certo temor, para a minha avó não existia, ou melhor, havia uma elevada probabilidade de não existir.

Foi a morte do véu, quero dizer, da toalha. A partir desse dia, e até ao segundo ataque de misticismo, de cada vez que olhava para a capa do livro das edições Paulistas, aquela com os pastorinhos, elas de lenço e de joelhos, ele em pé, de cajado e gorro castanho, muito devotos em contemplação à Senhora que pairava ecologicamente acima dos ramos da azinheira, pensava: estão a vê-la, pensam que estão a vê-la, ou disseram só que a viram?