Para que cada um de nós tenha liberdade religiosa, o Estado tem de ser laico. E questões intrinsecamente pessoais, portanto, sujeitas a moralidade íntima, não devem configurar a saúde pública. Um exemplo: uma criança filha de pais Testemunhas de Jeová precisa de uma transfusão de sangue ou morre, mas os pais não autorizam a transfusão. Se a guarda dessa criança não for rápida e temporariamente retirada aos pais, e se o juiz não decidir pela administração do sangue, a regra em vigor é religiosa, não científica, e ditada por um preceito religioso. O valor supremo não é a vida da criança, é a salvaguarda do pecado. Se isto parece bem a um crente, parece mal a um não crente.

Para que tenhamos liberdade de expressão, uma das bases do pluralismo e da democracia, o Estado tem de ser laico. Um exemplo: a fátua que decretou a morte de Salman Rushdie pareceu bem ao Ayathollah Khomeni como a muitos iranianos, há 30 anos. Para os assassinos da redação do Charlie Hebdo fez-se justiça. Para os não fundamentalistas como para os não crentes cometeu-se um crime hediondo, um massacre.

Há, em 2022, seis teocracias, ou se preferir, seis Estados teocráticos no mundo: Afeganistão; Irão; Mauritânia; Arábia Saudita; Iémen; Vaticano – o Sudão deixou de o ser em 2019.

Num Estado teocrático o poder político é exercido por um líder que representa um deus ou uma divindade ou um grupo de divindades, e esse líder governa como deus sob a forma humana, como acontecia no Japão, ou no Egipto antigo, e/ou através dos seus representantes, o clero. Numa teocracia as leis derivam das leis religiosas ou preceitos religiosos e o primeiro objectivo é estar ao serviço de deus, ou dos deuses, das quais emanam, não da população. De igual forma, os cidadãos devem estar ao serviço de deus. São Estados opressivos onde a diferenciação não é permitida, as regras são rígidas e as penalizações duríssimas.

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Os talibãs governam a partir da Xária, um sistema de leis religiosas islâmicas. Recentemente, no Afeganistão, o uso da burca voltou a ser obrigatório. Isto já depois da proibição de uma mulher sair de casa sozinha, ou de frequentar o ensino a partir de um determinado nível de escolaridade, ou de poder ter um emprego. A Xária sujeita a mulher não apenas ao seu deus mas ao homem. E ser apedrejada é uma possibilidade penal. Na Mauritânia, o ateísmo é ilegal e pode ser punido com a morte. Na Arábia Saudita, uma monarquia religiosa absoluta e, em simultâneo, uma teocracia, há polícia religiosa, segregação entre homens e mulheres no espaço público, e também aqui, os direitos das mulheres, debaixo da Xária, são poucos. Tal como no Iémen. No Vaticano, a última teocracia cristã do mundo, o Papa é o equivalente de um monarca absoluto, e a população deste Estado, de pouco mais de 800 pessoas, é na sua quase totalidade clero. Mas ainda que este Estado seja apenas uma pequena cidade, é daqui que emana o cânone legal para toda a Igreja Católica no mundo. Em comum há o facto de todos estes Estados se sustentarem pelo dogma e pela sua própria ideologia.

Nos Estados democráticos o governo é do povo, pelo povo; com respeito pela Carta dos Direitos Humanos; dirigido para o bem comum, os interesses comuns; eleições livres com representatividade do eleitorado; instituições transparentes, independentes, responsáveis e responsabilizáveis ao serviço de todos; com auto-fiscalização das instituições de poder e decisão e fiscalização entre si, para garantir a manutenção da liberdade, independência, e a alternidade. A democracia exige uma imprensa livre e a intervenção da sociedade civil.

O pluralismo democrático é tão cultural como religioso. O cimento que permite a união na diferença é a Lei, tanto quanto as interdependências sociais e comerciais. Assim, a conduta exigida pela Lei não pode ser determinada pela conduta exigida pelas diferentes religiões. Ainda que os Estados democráticos sejam permeáveis à religião, têm de garantir a liberdade para os que praticam uma religião, da mesma forma que têm de garantir a liberdade para os que praticam outra, e para os que não praticam qualquer religião, por muito que este exercício se revele exigente e o seu equilíbrio precário.

A relação entre a democracia e a religião tem de ser pensada. Ou melhor, tem de ser repensada, já que a própria religião entrou no basismo partidário e pressiona os poderes políticos. Mais. A cidadania é uma ética. A sua base é tanto religiosa como secular.

Enquanto eleitores escolhemos os valores que mais nos representam. Em todas as matérias, também nas de decisão moral. O aborto e a eutanásia são potenciais de tensão e conflito, mesmo institucional. E, na verdade, a neutralidade religiosa, que é institucionalmente desejável nas democracias, pode ser igualmente indesejável quando rasga os direitos humanos. E vice-versa: quando grupos religiosos se unem para defender causas que salvaguardam os direitos humanos, por exemplo, a luta contra a pena de morte. Nestes casos agradecemos essa falta de neutralidade. Ou quando, em regimes não democráticos, grupos religiosos pugnam pelos direitos humanos. O oposto disto também acontece. A Igreja Ortodoxa da Rússia, um Estado sem neutralidade religiosa, apoia Putin; por todo o lado, e a despeito do patriarcado, circulam imagens de bênção de armas, convertendo, em última análise, a invasão russa da Ucrânia numa acção santificada. A educação, ou se preferir, os curricula tendem a ser um outro ponto de tensão. Em Portugal, têm sido notícia os dois irmãos de Famalicão que têm chumbado por falta de assiduidade às aulas de Cidadania e Desenvolvimento depois de os pais terem declarado objecção de consciência. Outro ponto de tensão é a isenção de alguns impostos para as igrejas, como, por exemplo, o IMI, IMT, IRC – não surpreende, assim, a criação de mais de mil novas igrejas, no nosso país, em 15 anos.

Torna-se claro que em democracia é muito difícil definir os limites da liberdade. E, mais difícil, equilibrar a liberdade, a liberdade religiosa, e a identidade como conjunto de valores e práticas. Tendemos a pensar Portugal como um país Católico. Não é. E legalmente temos um princípio de igualdade para todas as religiões, quer concordemos ou não. Catolicismo, cientologia e islamismo, por exemplo, são iguais perante a Lei. Pessoalmente, não acredito na dianética, não me sinto um thetan, nem acredito em Xenu; discordo do uso do hijab fora do espaço religioso, seja na via pública, nas escolas, no desporto ou na praia. Isto não significa que pretenda proibir a cientologia ou o islamismo. Mas, de certeza absoluta, significa, pelo menos, que não quero nem vou adoptar as suas regras e preciso que o Estado me garanta que ninguém me vai obrigar a adoptá-las. De igual forma pensarão os cientologistas e os islâmicos em relação aos católicos. E os ateus pensarão da narrativa cristã o mesmo que eu penso de Xenu, o que ainda assim não será tão mau quanto o que penso sobre o hijab. Não considero que todas as religiões tenham o mesmo peso na nossa história e cultura ou contribuído de igual forma para o conjunto de valores que regem a ocidentalidade democrática. Assim mesmo, espero do Estado neutralidade religiosa.

Pessoalmente defendo, como tantos, felizmente somos milhões, que a Lei tem de tolerar aquilo que à ética não é suportável, e mesmo aquilo que à ética se opõe para a manutenção da sua neutralidade religiosa. Para que o Estado não se torne uma força coerciva. Da liderança moral não espero o mesmo do que da liderança política: espero da Igreja Católica oposição pública ao aborto. Tal como espero do Estado a garantia da liberdade de expressão para a Igreja Católica ainda que o mesmo Estado garanta a não criminalização do aborto.

Sei, como sabemos todos, que algumas religiões, ou os seus princípios, enformam a Lei mais do que outras. O ocidente é, essencialmente, pensamento greco-romano e cristão, e este é outro ponto de tensão numa sociedade aberta. Mas a sociedade é aberta por ser enformada pelos valores greco-romanos e da cristandade.

Para concluir: sou e serei sempre contra qualquer regra civil, partidária, ou religiosa que anule a democracia; promova a assimetria de poder entre o homem e a mulher; subalternize a mulher — mesmo as regras da minha própria religião. E nunca aceitarei a criminalização do aborto nem da eutanásia, que, reforço, em minha opinião, devem ter os seus limites definidos pela medicina e pela biologia e com o máximo respeito pela vida. E jamais aceitarei justificações, a propósito desta ou de qualquer outra questão, que abram a porta à perda de direitos conquistados num «fio inquebrado de séculos» da sua ausência.

Lauren Boebert, a congressista republicana apoiada por Trump que venceu as primárias no Colorado, faz tábua rasa da Constituição norte-americana e advoga a subordinação do Estado à igreja.

PS: Recomendo a leitura de Democratic Authority and the Separation of Church and State, Oxford University Press, 2011, de Robert Audi.

A autora escreve segundo a antiga ortografia