1 Dizia o comentador Marcelo Rebelo de Sousa a 23 de junho de 2004, poucos dias antes de ser claro que Durão Barroso iria trocar o cargo de primeiro-ministro pelo de presidente da Comissão Europeia, que tal seria um ato “suicida”. Porquê? Porque seria uma garantia de que o PSD perderia “todas as eleições seguintes”.

Luís Marques Mendes disse praticamente o mesmo este domingo para classificar a hipótese de António Costa se demitir para se candidatar a presidente do Conselho Europeu — partindo do pressuposto provável de que os Socialistas & Democratas continuam a ser o segundo grupo parlamentar europeu. “Entregava o poder de mão beijada ao PSD e Luís Montenegro nem precisava de fazer grande campanha”, disse Mendes.

Parece-me óbvio que Mendes terá exatamente a mesma razão que em 2004 se percebia que Marcelo iria ter.

Não só porque António Costa ficará exatamente com a mesma imagem de Durão Barroso (fugiu e trocou o país por Bruxelas), como o resultado será o mesmo: o PS perderá as eleições legislativas antecipadas que Marcelo prometeu ao país que irá convocar caso o primeiro-ministro se demita.

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Então isso significa que António Costa não irá Bruxelas, como o jornal Público interpretou das declarações que conseguiu do primeiro-ministro? Não necessariamente.

2 Em primeiro lugar porque na mesma notícia que tem um título afirmativo (“António Costa não está disponível para cargos europeus”), também se pode ler um cenário contrário: “se vier a deixar a liderança do PS antes das próximas legislativas, António Costa está apostado em deixar uma situação de estabilidade orçamental, económica e social que permita que o seu partido volte a ganhar eleições, mesmo que liderado por outra pessoa.”

Desde que Portugal assumiu a presidência do Conselho em 2021, no âmbito das lideranças rotativas semestrais entre os estados-membros, que é claro que António Costa ambiciona ir para Bruxelas. Bastava falar com alguns dos seus ministros para perceber como uma parte importante do Conselho de Ministros percebia que Costa estava nas suas sete quintas a tratar dos temas com os grandes da Europa e sem paciência para o Governo e os pequenos temas internos nacionais.

Dois anos antes, em 2019, Costa recusou esse mesmo cargo por falta de condições internas para assumir o cargo. Estávamos a poucos meses das legislativas de 2019 e o PS tinha boas hipóteses de conseguir um segundo mandato para governar.

3 O contexto político atual é radicalmente diferente. Não só o PS conseguiu uma maioria absoluta tardia em janeiro de 2022 (porque conseguida ao fim de mais de seis anos de poder), como o PS vai chegar às legislativas de 2026 com o lastro e o desgaste de mais de 10 anos no poder.

Partindo do pressuposto de que António Costa tem hipóteses de conseguir um lugar europeu (presidente do Conselho Europeu ou alto representante da política externa), e efetivamente tem, esse é que será o ponto decisivo para avaliar se António Costa vai ou não para Bruxelas: o desgaste político do seu Governo e da sua imagem.

Ou seja, saber se tem hipóteses de ser um candidato vencedor às legislativas de 2026 será um fator muito importante para António Costa decidir sobre o seu futuro.

E, ao contrário do que muitos dos analistas totalmente embevecidos com António Costa que pululam no nosso espaço mediático, duvido muito que Costa tenha hipóteses — por dados orçamentais positivos a nível da dívida pública e do défice que tenha para apresentar e por mais PRR que consiga investir no terreno.

4 O meu primeiro argumento é histórico. Olhando para a realidade do Portugal democrático e dos países europeus desde os anos 80, são muitos poucos os casos dos chefes de governo que conseguiram ultrapassar a a barreira psicológica dos 10 anos de poder.

Há quatro casos muito conhecidos que constituem a exceção:

  • Helmut Kohl, o chanceler que unificou a Alemanha e esteve 16 anos consecutivos no poder entre outubro de 1982 e outubro de 1998; Angela Merkel também liderou o Governo alemão durante 16 anos, entre 2005 e 2021.
  • Felipe Gonzaléz, o presidente do Governo que liderou Espanha durante 13 anos e meio;
  • E Margaret Thatcher, a primeira-ministra que governou entre 1979 e 1990.

De resto, temos Aníbal Cavaco Silva que governou durante 10 anos e, a seguir, vêm nomes como Aznar, Zapatero e Rajoy que lideraram o Executivo espanhol entre 8 e 7 anos.

A queda de cada um deles certamente que será explicada com razões particulares dos respetivos contextos políticos mas há um ponto em comum: o desgaste político porque a democracia é um sistema político que necessita de rotatividade no poder de pessoas e de partidos. Ninguém detém o poder até à eternidade.

5Veja-se o caso de Cavaco Silva. Também se pensava no início dos anos 90 que o PS de António Guterres não teriam qualquer hipótese em frente a Cavaco, tal era a inconsistência da proposta socialista. Cavaco tinha números económicos fantásticos e inúmeras reformas para apresentar, comunicação social era muito crítica de Guterres e o PS não dava uma para caixa.

Até que veio a crise económica de 1992 alimentada pela subida do preço do petróleo que, por sua vez, tinha origem na primeira Guerra do Golfo, devido à invasão do Koweit pelo Iraque de Saddam Hussein. E o PIB desceu 1,67% em 1993.

Contudo, foram os sucessivos casos e escândalos do cavaquismo que levaram à erosão do base social de apoio do PSD — um pouco como tem acontecido com o Governo de António Costa desde 2022. O processo de degradação do cavaquismo foi lenta, gradual e consistente entre 1992 e 1995, culminando com uma derrota nas legislativas de 1995 contra o PS de Guterres por um score de 43,7% (PS) contra 34,1% (PSD).

Cavaco ainda tentou ir às presidenciais de 1996 mas também perdeu para Sampaio — por pouco é certo, mas averbou a sua única derrota eleitoral até hoje.

6 Dez anos foi até agora o limite máximo da duração política possível em democracia para um primeiro-ministro português. É duvidoso que António Costa consiga chegar a números que já não se praticam, como aqueles atingidos por Khol na Alemanha e González em Espanha.

O costismo está a passar pelo mesmo processo de erosão do cavaquismo. Os casos e escândalos sucedem-se e, acredite caro leitor, a cerimónia ainda vai no adro. Muitos casos surgirão porque a tendência é para piorar, devido ao desgaste político e à consequência natural dos socialistas se tornarem cada vez mais defensivos e fechados.

Acresce a tudo isto o facto de o PS ter começado a perder a sua maioria absoluta nas sondagens, São cerca de 10 pontos percentuais que desapareceram de um momento para o outro em poucos meses.

7 Por outro lado, o primeiro-ministro, o Governo e o PS padecem cada vez mais da doença da arrogância da maioria absoluta. Veja-se o caso do próprio António Costa que ganhou ganhou o hábito de não responder às perguntas da oposição no Parlamento, como voltou a acontecer na semana passada a propósito da sua viagem de Falcon para ir ver a final da Ligal Europa à lado de Viktor Orban.

O mesmo se diga do facto de o PS já ter travado 56 audições parlamentares este ano, incluindo a 38 governantes. Isso só demonstra que aquela narrativa de marketing que Costa gosta de dar do seu Governo — de que colabora com o Parlamento e que não cedeu à arrogância da maioria absoluta — é uma imagem falsa.

Aliás, bem se via pela postura facial do primeiro-ministro durante esse debate parlamentar em que o PSD, a IL, o BE , o PCP e o Chega pediram, e bem, explicações. Costa parece cada vez mais uma daquelas personagens snobs do Eça: está farto da “choldra”, quer é pensar em Bruxelas — no tempo de Eça era Paris — e nos grandes temas europeus.

É por isso que, para sair da “choldra”, Costa tem de dizer “sim” a um convite para um cargo europeu, mas terá de fazer muito melhor do que Durão Barroso em 2004. Ou seja, terá de construir uma narrativa eficaz de que vai ajudar o país em Bruxelas — e não fugir.

Texto alterado às 9h36: acrescentado o nome de Angela Merkel no ponto 4.