Esta semana o relatório do Conselho da Europa confrontou-nos a todos, incluindo o presidente da república, com a modéstia do esforço da classe política portuguesa contra a corrupção. Poucos países da Europa fazem tão pouco. No entanto, há na nossa elite partidária quem não ache que seja esse o problema. Para o PS e sobretudo para a destrambelhada direcção do PSD, o mal não é a corrupção, mas os magistrados do Ministério Público que investigam a corrupção. A ameaça, segundo nos dizem, está na “judicialização da política”. E para a evitar, têm uma solução: a “politização da justiça”, isto é, o controle do Ministério Público, e portanto das investigações, por delegados dos partidos em maioria num Conselho Superior com poderes reforçados.

Estou a exagerar? Não era nada disso que estava em questão nos projectos do PSD e do PS, entretanto chumbados em comissão parlamentar? Por mim, confio na ex-Procuradora Geral da República, a Dra. Joana Marques Vidal, que nunca se mostrou atreita a exageros ou a exaltações, nem quando teve pela frente os mais graves processos do regime, nem sequer quando foi afastada. E confio também nos magistrados em greve, porque o risco de pressões não é uma lenda. Lembram-se de Lopes da Mota, o presidente do Eurojust? Em 2009 ameaçou os procuradores do caso Freeport de que se o PS perdesse as eleições por causa dessa investigação, “alguém iria pagar caro por isso”. Para quem tem dúvidas de que as ideias do PSD e do PS pudessem culminar na consagração de Lopes da Mota, recomendo a análise de Luís Rosa.

O que está em causa? Como a Dra. Joana Marques Vidal explicou, não é apenas a autonomia do Ministério Público. É, por essa via, a independência da justiça, e portanto, as garantias dos cidadãos. Sim, desta vez é mesmo a democracia que está em causa. Para a associação dos Magistrados Europeus para a Democracia e Liberdades, não foi difícil descortinar nos planos do PSD e do PS a “intenção de subverter o respeito pelo Estado de Direito e as leis democráticas no que se refere ao Ministério Público em Portugal”. Não, Viktor Orban não está sozinho.

Deixemo-nos de ingenuidades. A questão que anima toda este tumulto não tem origem num qualquer debate académico sobre o equilíbrio e a coordenação entre órgãos do Estado. Existem esses debates, sem dúvida, mas é claro que os argumentos daí provenientes estão, neste momento, a ser utilizados de modo oportunista. A razão de ser de tudo isto, como aliás o presidente da república reconheceu, é a investigação, acusação e julgamento por uma justiça independente dos abusos e corrupção de detentores de cargos públicos. É, por outras palavras, o interesse dos oligarcas em ficarem isentos dessa maçada de andarem a ser filmados à porta de tribunais.

Estamos portanto a falar da natureza do regime. Porque o abuso de poder e a corrupção não são apenas defeitos: são factores de transformação. Até podemos continuar a fazer eleições. Mas se admitirmos que, por falta de efectivo escrutínio legal, governantes e autarcas possam exercer os seus poderes sem estarem limitados por leis e regulamentos, ou possam recorrer à corrupção para se remunerarem pelas suas funções e organizarem cumplicidades entre si — tudo muda. Em vez de uma democracia, passaria a haver um regime totalmente oligárquico, em que predominaria a vontade dos poderosos e o interesse privado (o enriquecimento) seria a razão principal para o exercício de cargos públicos. Por enquanto, a democracia vence a oligarquia por 1 a 0. Mas estamos no intervalo. Veremos como o jogo acaba.

Frequentemente nos congratulamos por não haver por aqui os populistas que noutras paragens são acusados de atormentar as democracias. Ainda bem. Mas com este PSD e este PS, quem precisa de populistas para o Estado de Direito democrático estar em risco?

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