Adrian Wooldrige (editor do The Economist) publicou recentemente um livro onde argumenta que a meritocracia é condição necessária para o crescimento económico, mais até do que a qualidade da democracia ou o tamanho do Estado: Singapura (pouco democrático) ou os países escandinavos (elevado peso do Estado) têm performances económicas que contrastam com os países do Sul da Europa, onde o clientelismo e nepotismo são prática corrente.

Wooldrige dá o exemplo de Veneza, a grande potência da Idade Média, onde imperava a meritocracia. Os documentos públicos da cidade mostram uma renovação constante da elite comercial, já que, todos os anos, 60% dos nomes que apareciam nos contratos eram novos. Até que, em 1315, foi criado o Libro d’Oro das famílias nobres, atribuindo-lhes privilégios e fechando oportunidades a todos os outros. O declínio subsequente foi rápido, de tal forma que este episódio ficou conhecido como La Serrata (o fecho) e foi determinante para a queda de Veneza enquanto ator principal no comércio mundial.

Portugal tem um grave problema de falta de meritocracia. Temos uma elite instalada que, ao longo de séculos, criou instituições de baixa qualidade para perpetuar os seus interesses – a nossa versão da Serrata… Filiação partidária, corporativismo, família e amigos são, muitas vezes, mais importantes no desenvolvimento de uma carreira do que formação, experiência e competência.

Há 25 anos que divergimos da Europa, mas não estamos condenados à mediocridade, nem temos que nos resignar. Voltar a crescer como no passado é possível, mas implica mudar o atual contrato social. Precisamos de assumir uma cultura de mérito na nossa sociedade, que assegure que, nas empresas e na administração pública, as pessoas com maior talento e mais qualificadas são selecionadas, promovidas e recompensadas.

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Falta meritocracia em Portugal

A face mais visível de uma cultura meritocrática é termos as pessoas certas nos sítios certos. Está bem presente nas nossas mentes a substituição de Francisco Ramos pelo vice-almirante Gouveia e Melo na liderança da campanha de vacinação. O mais extraordinário deste exemplo é que a primeira escolha para uma operação tão desafiante não foi de um especialista em logística com capacidade de liderança no terreno.

É um lugar-comum dizer-se que precisamos de atrair os melhores para a administração pública. Infelizmente, é ainda mais comum assistir a debates demagógicos sobre os salários de políticos e administradores de topo. Para poder competir no mercado de trabalho pelos melhores, a administração pública tem que remunerar e criar condições competitivas para atrair esse talento. Isto tem um custo mas, quando não o faz, o custo é muito maior: ter indivíduos mal preparados a tomarem decisões de grande impacto económico sai muito mais caro do que investir para atrair os melhores. Uma administração pública moderna e bem preparada é um pilar essencial para o desenvolvimento, basta olharmos para os exemplos de França e Inglaterra onde escolas de enorme prestígio (École Nationale d’ dministration, Oxford, Cambridge) preparam o melhor talento para carreiras na alta administração. Infelizmente, em Portugal, a nossa administração pública está longe de uma cultura de mérito. Ricardo Reis referia recentemente que “ainda demasiados passos na vida dos Portugueses dependem de uma só pessoa assinar um papel, sem ser punida ou recompensada por fazê-lo bem ou não”. Ou seja, a falta de escrutínio do mérito profissional é um entrave presente e permanente ao progresso e crescimento no país.

Um estudo recente da Nova SBE para o think tank Edulog mostra claramente o impacto que poderia ter uma cultura de mérito na educação: no ensino secundário, se os professores que estão nos 10% com menor valor acrescentado se equiparassem aos 10% melhores, dois terços dos alunos que agora têm nota negativa passariam a ter nota positiva. Este ganho potencial é tão extraordinário, que não se entende como é que a nossa sociedade tolera a falta de meritocracia vigente na seleção, avaliação, promoção e remuneração de professores.

Para entender o quão generalizada é a falta de meritocracia em Portugal, é interessante olhar para um exemplo em que esta impera. No futebol – do lado dos jogadores e não dos dirigentes… –, qualquer miúdo com jeito para chutar na bola é rapidamente identificado por olheiros, vai para uma academia de treino e tem acesso a uma carreira internacional em que a remuneração está muito alinhada com a competência e incentiva o esforço. Curiosamente, esta é uma área em que o país ambiciona competir com os melhores do mundo, não se vendo grandes ressentimentos em relação ao sucesso, nem tolerância com a mediocridade ou falta de brio profissional. É também uma indústria que ilustra uma das melhores consequências da meritocracia: a mobilidade social.

Para entender o impacto da meritocracia, imagine-se só o que seria uma seleção nacional formada por primos e amigos. Ou, pelo contrário, o que seria termos um Governo formado pelos melhores do país…

Origens profundas, ataque constante

A nossa sociedade assenta, em larga medida, num sistema de ligações políticas, familiares e de identidades culturais, em que a elite instalada tenta preservar a posição dos seus. Privilegiar os laços de proximidade em detrimento do mérito tem origens sociológicas profundas: somos pequenos, muito baseados na família e muito desconfiados dos outros. O último European Values Survey mostra que apenas uma pequena percentagem dos Portugueses confia nas pessoas à sua volta, um dos resultados mais baixos a nível europeu.

Mas o ataque à meritocracia não se limita à captura de poder pelas elites e acontece em muitas outras dimensões. Todos os dias vemos temas de justiça social e equidade ou de identidade de grupo a serem usados contra a cultura meritocrática. Também no mundo académico, autores como Michael Sandel, defendem a tese da meritocracia como privilégio encapotado, argumento muitas vezes usado para defender tratamentos diferenciados, quotas e até o facilitismo na educação. Num artigo recente, António Barreto afirma que “a propensão demagógica para criar direitos e favorecer grupos tem levado a criar um Estado repleto de novos confrontos”, ou seja, a busca cega pela equidade em detrimento da igualdade de oportunidade dificulta a busca de compromissos na sociedade.

Mais e melhor

A visão económica para o país tem que se focar em fazer crescer o bolo económico ao invés de estar fixada na distribuição das migalhas de um bolo estagnado, e, para isso, precisamos de uma apologia do mérito.

O caminho para uma clara assunção da meritocracia no nosso contrato social exige o esforço de todos, individual e coletivamente. Precisamos de ser intransigentes com todos os casos de falta de mérito, mesmo nos casos próximos em que tantas vezes pactuamos com cunhas, favores e amiguismos.

Seguindo o exemplo da educação, precisamos todos – famílias, empresas, escolas – de aumentar muito o nível de exigência. Para que a educação sirva os alunos, é necessário transformar o sistema que rege a carreira dos professores num sistema mais competitivo, em que a responsabilidade pelo recrutamento, avaliação, remuneração e promoção passe para as escolas e em que as escolas tenham incentivos para melhorar o seu desempenho. Não nos esqueçamos que apenas 1% dos professores tem menos de 30 anos; apenas 1% dos alunos do ensino secundário pensa em seguir esta profissão e apenas 9% dos professores se sente valorizado socialmente. Estes factos mostram uma classe docente envelhecida, sem prestígio social e com dificuldade em atrair novo talento.

A tão falada e nunca executada reforma da administração pública devia assentar na meritocracia: atrair os melhores, avaliar a sua performance e recompensá-los de acordo. Isto exige uma mudança muito profunda: funcionários de alto nível em vez de assessores, concursos e avaliações sérias e consequentes, carreiras prestigiadas e bem remuneradas, transparência e escrutínio, despedimento por má performance

Em última análise, estas mudanças só acontecem se a meritocracia passar a ser um tema que nos preocupe como sociedade, que se torne numa bandeira política de alguns partidos, uma exigência das empresas e das famílias.  Senão, o custo está à vista: mais umas décadas perdidas. Não tenhamos ilusões, os melhores vão sempre procurar trabalhar numa cultura de mérito. Se não a desenvolvermos aqui, vão procurá-la fora como temos visto nos últimos anos de emigração maciça dos mais qualificados.

O melhor jogador de futebol do mundo é português e a sua superioridade é fruto de trabalho árduo, dia após dia, ano após ano, trabalho esse que é reconhecido a nível global. Melhor exemplo de meritocracia em Portugal é impossível – tem é que ser seguido pela sociedade!

Notas:

  • Por opção, os autores tentaram escrever segundo o novo acordo ortográfico, com o sucesso possível.
  • Os autores enfrentam a lei ao assinar como economistas, por não pertencerem à respetiva ordem – mais um pequeno exemplo corporativista e pouco meritocrático do nosso país.
  • As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem as posições de qualquer instituição que representam.