1E de repente, Marcelo Rebelo de Sousa acordou do marasmo dos afetos para dar uma bicada em António Costa, censurando o que classifica ser “ambiente de fim de ciclo” quando o Governo apenas tomou posse há quase cinco meses. Parece que o Presidente da República, homem arguto e com um suposto sentido genial de oportunidade política, receia que o segundo Executivo socialista não tenha nada para dar ao país. Ou seja, Marcelo descobriu de repente que o Governo é imobilista e que não consegue levar avante reformas básicas.

Mesmo que as suas críticas tenham incluído Rui Rio e a sua viragem estratégica para a guerrilha política, tirando-lhe o tapete no que a uma crise política diz respeito ao afastar qualquer cenário de eleições antecipadas, não se pode ignorar que o principal visado foi o Governo. Costa não está a conseguir construir no Parlamento uma “base de sustentação sólida de governação” e o Presidente não perdoa.

Até porque sabe que o primeiro Executivo de Costa, o tal que foi histórico por chamar ao arco da governação os partidos portugueses prediletos da Venezuela de Hugo Chavéz e da Coreia do Norte de Kim Jong-un, também pouco mais acrescentou do que aumentar os salários dos eleitores tradicionais do PS (funcionários públicos e pensionistas).

2 E porque razão Marcelo decidiu fazer agora este aviso à navegação? Porque constatou uma incapacidade do Governo em, por um lado, de negociar o apoio em dossiês importantes como o aeroporto do Montijo, o novo regime das Parcerias Público-Privadas. E, por outro lado, em construir uma maioria sólida que impeça coligações negativas sobre o IVA da luz, a linha circular do metro de Lisboa ou das nomeações para o Tribunal Constitucional e para o Conselho Superior da Magistratura. Daí a sensação de “fim de ciclo” de Marcelo.

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Se tivermos em conta que o Presidente vai recandidatar-se a um segundo mandato — o anúncio só deverá ser feito no segundo semestre de 2020 —, é particularmente relevante que se assuma como um garante da estabilidade, rejeitando eleições antecipadas. Mas será mesmo assim? Será que Marcelo quer mesmo fazer da estabilidade de um segundo Governo Costa um factor chave do seu segundo mandato, quando todos os presidentes anteriores tudo fizeram nos últimos 5 anos para que a respetiva área ideológica regressasse ao poder?

Foi quase como líder da oposição que Mário Soares ajudou a descredibilizar o cavaquismo e, por arrasto, ajudou António Guterres a ganhar as legislativas de 1995. O mesmo se aplica a Jorge Sampaio em 2005, quando dissolveu o Parlamento e obrigou Santana Lopes a ir a eleições antecipadas contra José Sócrates. Ou quando Cavaco Silva passou a criticar duramente o Governo Sócrates por aumentar brutalmente a despesa e a dívida pública — o que culminou com o pedido de resgate internacional à famosa troika.

O objetivo de Marcelo passa mais por apresentar-se aos eleitores numa posição de charneira no xadrez político. É o árbitro por excelência e o único que consegue fazer com que as diferentes forças políticas dialoguem. Mas tenho dúvidas que Marcelo leve a ideia da estabilidade de um segundo Governo Costa para a sua campanha presidencial.

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Contudo, há aqui outro factor muito importante: as eleições presidenciais de 2021. André Ventura, candidato já assumido, e Ana Gomes, são as possibilidades mais fortes como adversários. Ambos têm um perfil muito próximo da luta contra a corrupção. E aqui Marcelo tem algumas nódoas no curriculum.

O calcanhar de aquiles do Presidente é objetivamente o seu ato de cumplicidade com o Governo no afastamento de Joana Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República. Marcelo deixou que António Costa pudesse satisfazer o PS jacobino e intolerante que, obviamente, não pode pactuar com uma procuradora-geral que criou as condições para que um ex-líder socialista fosse detido preventivamente e acusado de se ter deixado corromper desde o primeiro dia em que entrou em São Bento.

O facto de ter permitido a nomeação de Lucília Gago faz igualmente com que Marcelo fique associado à tentativa de destruição de um dos maiores legados de Joana Marques Vidal: a autonomia dos procuradores, tal como já expliquei. Pior: Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos beneficiados (o outro foi António Costa) desse controle hierárquico já exercido pelo diretor do DCIAP (Albano Pinto) que proibiu os procuradores do caso de Tancos de inquirirem por escrito o Presidente da República e o primeiro-ministro.

Não está em causa qualquer espécie de culpabilidade ou relação de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o vergonhoso encobrimento político do ‘achamento’ das armas roubadas dos paióis de Tancos. Está em causa, sim, uma alegada associação do Presidente da República a tentativas de controle político do Ministério Público nos inquéritos de maior melindre político. É certo que o líder da oposição Rui Rio tem a mesma visão que o sector jacobino do PS mas isso só reforça a necessidade de termos um Chefe de Estado que defende a independência do Poder Judicial (do qual o Ministério Público faz parte) e protege os magistrados de pressões do poder executivo e legislativo.

Com o Luanda Leaks, as coisas mudaram significativamente e obviamente que o papel que Marcelo e António Costa tiveram estará sob duro escrutínio nas eleições presidenciais. Falo obviamente do episódio do “irritante” e da pressão feita quer pelo Presidente da República, quer pelo primeiro-ministro, sobre a Relação de Lisboa. Marcelo e Costa não descansaram enquanto a Relação de Lisboa não decidiu pelo envio dos autos para Angola.

4Resumindo e concluído: a concorrência de André Ventura e de Ana Gomes só vai fazer bem a Marcelo Rebelo de Sousa. Se vai fazer, ou não, com o que o Presidente ultrapasse a votação de 70,3% de Mário Soares em 1991, já é outra conversa.

Para já, o ponto de partida de Marcelo é um pouco acima dos 50%, sendo certo que Ana Gomes (e mesmo André Ventura) têm uma margem manobra muito significativas. A recandidatura de Marcelo arrisca-se a não ser um passeio no parque.

PS – A nova estratégia de guerrilha urbana de Rui Rio para desgastar o Governo poderia fazer sentido se o PSD estivesse em condições de lutar pela vitória em legislativas antecipadas. Mas não está. Em nenhuma sondagem o PSD está sequer próximo do PS. Portanto, a não ser que Rio goste de perder eleições – perdeu todas as que teve como líder do PSD – não se percebe qual é o objetivo da sua estratégia política. Além de não se entender como foi possível passar de defensor de grandes compromissos com o PS (e seu Best Friend Forever) para anti-socialista primário. Deve haver um lugar no meio mas a moderação não é o forte de Rio. Como se vê na questão do matadouro do Porto, uma Parceria Público-Privada que Rio apenas que bloquear devido a ódios políticos que trouxe do Porto para Lisboa.