1 Às vezes – embora não seja para fazer caso – parece que é como se houvesse duas jornadas mundiais da juventude (JMJ) em paralelo: a dos pescadores de pérolas falsas e as verdadeiras. Nunca se cruzarão, a luz não gosta da sombra, a pescaria é ilusória: mesmo que pareça farta na mediatização da desconfiança sobre prazos e custos ou na ampliação de dificuldades, os jovens sabem que os caminhos paralelos nunca se encontram. O empenho varre qualquer má pescaria.

2 Testemunhei esse empenho ao vivo e em directo, a várias vozes. Empenho, esforço, entusiasmo, energia. O “terreno” das Jornadas é disto que é adubado, é disso que apetece falar, é só isso que a ocasião – esta, única e irrepetível – naturalmente merece e nos merece. No epicentro de Lisboa, nos arredores, no país, há incontáveis formigas laboriosas que longe das superestruturas do poder e incólumes à sua desgraçada fragmentação, há longos meses se afadigam, cruzam, comunicam e se comprometem; há centenas de organizadores, equipas, trabalhadores, voluntários; há criatividade no ar, artífices, músicos, artistas, cantores, coros, encenações, ensaios. Há uma real mobilização que se palpa e percebe: são também incontáveis os que querem colaborar de moto próprio, pro bono, de qualquer maneira: a pronta generosidade corre a jorros a par com uma imediata disponibilidade que sacrifica fins de semana e férias. Responsável e comovedor. Cada um sabe o que faz, ninguém me pareceu atontado ou submerso pela dimensão da empreitada.

Claro que há desmazelos e sobressaltos, em Portugal haverá sempre, cada povo é como é, temos novecentos anos de treino. Mas que interessa isso ao pé “deste” tudo: abrir os braços de Lisboa a centenas de milhares de jovens que veem por bem, trazendo na mochila a alegria, a convicção da sua fé e o desejo de a partilhar; o sermos o país hospedeiro de um dos maiores acontecimentos mundiais – entre nós nunca houve outro com estas proporções e exigências; ter Francisco como visita de honra e voltá-lo a ouvir pedir à Igreja que “saia” e aos jovens que “abram uma janela” como já lhes pediu em Agosto do ano passado através da entrevista que lhe fiz (e que o Santo Padre concedeu justamente “em nome das Jornadas Lisboa 2023”).

Cristãos ou não cristãos, católicos mais ou menos zangados, agnósticos, homens com muita ou pouca fé, gente recalcitrante ou distraída, poucos serão porém os indiferentes. Deus fala de muitos modos, sempre para todos. Apesar de íntima e muitas vezes escondida, a necessidade de uma relação ou ponte ou porta com o transcendente, é intrínseca ao ser humano. Sobrarão apenas os queixosos profissionais, os desdinhadores oficiais, e claro as “encomendas” anticlericais contrastando – em forçado despropósito – com a alegria festiva desta manifestação de fé numa Igreja que dura. É por entre a graça e o pecado que ela caminha há dois mil anos. E chegou até hoje.

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3 Interessa porém infinitamente menos o meu olhar do olhar de quem, na liderança ou no terreno, está “lá” desde há longos meses de trabalho.

Há dias perguntei a alguns deles, se “tudo a postos”:

“Tudo dentro dos prazos previstos” disse-me a porta voz das JMJ, a jornalista Rosa Pedroso Lima: “Depois de meses de trabalho de bastidores, são já visíveis os frutos de milhares de horas de dedicação de milhares de trabalhadores: o Parque Tejo é um gigantesco espaço verde que ficará à disposição das populações de Lisboa e Loures no final desta JMJ. As obras necessárias no Parque Eduardo VII começam em breve. Uma só amostra do muito que já se fez e do que se irá fazer…”

Rosa, “a voz que dá a voz da JMJ para fora”, prevê que, “de acordo com o histórico de anteriores Jornadas, mais de 4 mil jornalistas de todo o mundo se acreditem para acompanhar a de ‘Lisboa 2023’: “Mas ser porta-voz é, também, passar a palavra (ou o microfone) aos vários protagonistas que estão a construir este evento”.

A cada nível operacional de realização ou de intervenção, as definições de “desafio” vão variando conforme a natureza das respectivas responsabilidades. Para Rosa Pedroso Lima “o mais desafiante é conseguir responder com rigor e rapidez a todas as perguntas que chegam. O interesse pela JMJ é gigante, o que é muito bom… Corresponder a esse interesse e ao ritmo avassalador a que funcionam hoje as redações é a maior dificuldade”. Menor sempre porém que este “sinal de esperança num mundo de incerteza, guerra, indiferença e injustiça”: “O facto do Papa juntar jovens vindos de todas as partes do planeta, é um farol de união. ‘Só’ isso é uma imensidão”.

O padre Hugo Gonçalves (pároco da Igreja do Campo Grande) trabalha nesta JMJ desde 2019. Escolhido pelo Bispo D. Joaquim Mendes, é o director do Festival Mundial da Juventude (FMJ) cujos números quase arrepiam: cerca de duzentos eventos espalhados por oitenta locais distintos. Sabendo que Lisboa acolheria as Jornadas de 2023 e que lhe caberia a “pasta” do FMJ, o Padre Hugo esteve no Panamá em 2019 com um “duplo olhar”: participar na Jornada e observar ‘in loco’ a sua organização”.

“Tudo está a ser pensado essencialmente do ponto de vista espiritual, mas também cultural e esteticamente. Vamos por isso ter algo de inédito na história das Jornadas: Matilde Trocado directora artística do Festival da Juventude, convidou jovens artistas de todo o mundo – dança, música, teatro, etc. — para uma residência artística aqui em Lisboa onde já há alguns meses trabalham juntos no que de melhor têm para apresentar culturalmente. Serão eventos artísticos, desportivos, religiosos. Música, teatro, dança, canto, cinema; um torneio de futebol, outro de vólei de praia. E, como é natural, acontecimentos marcadamente religiosos com congregações, movimentos, etc., que vindos do mundo inteiro se juntarão em várias igrejas de Lisboa com propostas espirituais de palestras, momentos de oração e muito mais”

Dizer “desafio” talvez seja pouco para a dimensão do Festival, mas o meu interlocutor não se impressiona: tem uma grande equipa, trabalha há quase dois anos com ela, está “confiante”: “a produção do Festival está a correr muito bem, e a articulação com as câmaras de Lisboa, Loures e Cascais e as suas respectivas entidades e infraestruturas, é também excelente.”

Para além de festivais, encontros e acontecimentos, o que muito particularmente interpela e guia o sacerdote é lema-condutor que o Papa Francisco sugeriu para a Lisboa 2023: “Maria levantou-se e partiu apressadamente”.

“Nesta Jornada todos vamos ao encontro uns dos outros, levando Jesus na nossa vida e privilegiando o que são as atitudes próprias de quem é íntimo de Jesus. Mas há Nossa Senhora e a sua atitude de disponibilidade, de serviço, o partir, o sair de si. Espiritualmente esta Jornada também é a universalidade, a fraternidade. A mensagem de que o cristianismo é para todos. Em todas as latitudes. Por mais diferentes que nós sejamos, há pontos de contacto entre as nossas vidas. A mim o que me entusiasma sempre muito na Jornada é que eu posso estar sentado no chão e ao meu lado estarem jovens por com t-shirts da Síria, como aconteceu por exemplo em Cracóvia, ou estarem jovens com uma bandeira do Vietname, como no Panamá. Ou como aqui em Portugal onde iremos ter por exemplo entre múltiplos outros, um grupo de vietnamitas…”

4 Entre Deus e a festa; o Papa e os jovens; a espiritualidade e a mensagem; a cultura e o desporto; ou melhor, para além de tudo isso, há todo um mundo de organização meticulosa, detalhada, complexa que cabe ao município de Lisboa e se organiza e produz sob a sua responsabilidade. Deixo por isso aqui algumas perguntas e algumas respostas tal como as fiz e que resumem a conversa que mantive com David Lopes, o (sobredotado?) operacional número um da autarquia de Lisboa para esta Jornada.

Como chefe da Unidade de Missão da Câmara Municipal de Lisboa, qual o ponto de situação hoje, a poucas semanas, do dia 1 Agosto? Que diz o maestro da equipa da câmara da capital?

Cada dia é mais intenso que o anterior: saber quantos peregrinos virão e onde ficarão alojados é um dado tão importante para quem tem a responsabilidade de os transportar como para quem tem que calcular o peso do lixo que vão produzir de modo a conseguir desenhar um plano de resíduos que permita que a cidade continue a funcionar com o dobro ou o triplo da sua população. Os grandes palcos são dois, mas a Jornada de Lisboa acolhe o Festival Mundial da Juventude que se espalha em 80 locais da cidade de Lisboa. Na comunicação massificada só se fala da parte de cima do icebergue. Invisível aos olhos estão outros desafios. Há quem lhe chame problemas ou caos. Na unidade de missão da CML preferimos dizer que estamos obsessivamente preocupados com o planeamento. Queremos conseguir entrar no mês de Julho a atacar os detalhes sempre em equipas multidisciplinares: Obras e Manutenção, Mobilidade, Cultura e produção de eventos , Higiene Urbana, Proteção Civil, Sapadores Bombeiros, Polícia Municipal, Empresas Municipais. Queremos conseguir que uma cidade pequena fisicamente, para tantos jovens, possa passar a ter algumas centenas de milhares de novos embaixadores da nossa capital e do nosso país.

Qual a sua expectativa» O país esta mobilizado? Os vários “parceiros”, autoridades, instituições, voluntários, trabalhadores, estão mobilizados?

Em boa verdade ninguém sabe o que é olhar uma massa de um milhão de pessoas a movimentar-se ao mesmo tempo em direção a um local específico. Esse momento vai acompanhar-nos, espero que por boas razões, para o resto da nossa vida. Todas as polémicas, e casos, que fomos vendo serem discutidas na praça pública, para além da virtude de nos mostrarem que o escrutínio funciona, remeteu para um segundo plano que o país está muito mais mobilizado do que se imagina. A Jornada, do ponto de vista dos jovens e das suas comunidades, há muito começou. Do Mogadouro a uma pequena cidade nas Filipinas. Falta agora o encontro final e também ecuménico que vai acontecer em breve. Tenho conhecido grandes profissionais na área pública e privada que se estão a preparar o melhor possível para estas jornadas. Se tivesse que mencionar duas áreas das quais espero o melhor, são as nossas forças de segurança e a preparação da operação televisiva que pode fazer destas Jornadas um dos maiores eventos em termos de espectadores em todo o mundo.

Num mundo tão incerto e desamparado como este, hoje, qual o maior ou mais relevante significado das Jornadas Lisboa 23? No fundo, o que é “O” essencial aqui?

Vivemos um período pandémico a que chamo o ano dos 24 meses. Ainda me lembro da forma como as pessoas se olhavam nas duas primeiras semanas de confinamento enquanto esperavam na rua o momento de entrar no supermercado. O mundo ainda não se curou mental e espiritualmente de tudo isto, num momento em que tragédias como a da Ucrânia até fazem esquecer o terror que se está a viver na Etiópia, no Iémen, em Mianmar, no Haiti, na Síria, no Afeganistão. Se a isto juntarmos a guerra que o mundo teima em manter contra a biodiversidade e os Oceanos, então estas Jornadas podem ser uma janela para a paz e para a humanidade de que somos feitos.