O Banco Central Europeu (BCE) anunciou, a 5 de junho, um conjunto de medidas para combater o risco de o atual período de inflação baixa se prolongar demasiado, resultando em deflação, e incentivar o crédito na Europa. Apesar de a taxa de câmbio não ser um objetivo explícito do BCE, o presidente da autoridade monetária da zona euro, Mario Draghi, reconhece que uma parte da diminuição da inflação se deve ao impacto da valorização excessiva do euro sobre certos preços, nomeadamente do petróleo e dos bens alimentares. Desta forma, estas medidas têm também o objetivo implícito de incentivar a desvalorização do euro face ao dólar.
Para combater em todas estas frentes, as medidas de estímulo monetário tradicional seriam provavelmente ineficientes. Por isso, os membros do conselho de governadores do BCE aprovaram unanimemente um conjunto de medidas, inovadoras no contexto da zona euro, com as quais esperam apoiar o relançamento da economia europeia e a subida da inflação.
Taxas de depósito negativas deverão ter impacto sobretudo na taxa de câmbio
No que diz respeito às taxas de juro, o BCE reduziu as três taxas de referência. A taxa diretora, isto é, a taxa de refinanciamento aos bancos comerciais, diminuiu de 0,25% para 0.05%. A taxa aplicada à facilidade permanente de cedência de liquidez, isto é a taxa de crédito de emergência para os bancos comerciais, foi reduzida para 0,4%. Finalmente, a taxa aplicada à facilidade permanente de depósito passou para -0.10%. Isto implica que os bancos comerciais passam a pagar para depositarem junto do BCE o excedente de liquidez que possa existir nos seus balanços.
A aplicação desta última medida, que tinha sido descontada pelos mercados já há várias semanas, não deixa de ser controversa. Primeiro, os depósitos dos bancos comerciais junto do BCE já diminuíram significativamente desde o pico de 820 milhões de euros em março de 2008, após duas operações de refinanciamento de longo prazo do BCE. Os dados disponíveis para a semana passada mostram que os depósitos eram de apenas 40 milhões de euros e que a tendência das últimas semanas era para continuarem a diminuir. A política de não-remuneração dos depósitos junto do BCE parecia estar a fazer efeito, pelo que a introdução de uma penalização parece acrescentar pouco à política anterior.
Em segundo lugar, o impacto de taxas de depósito negativas sobre a concessão de crédito por parte dos bancos comerciais é duvidoso, particularmente quando a posição desses bancos se encontra fragilizada, tal como é o caso da banca portuguesa. Os bancos podem preferir manter os depósitos junto do BCE, ainda que tenham de pagar uma penalização, e passar esse custo para os seus clientes, baixando as taxas de depósito (uma preocupação frequentemente invocada pela Associação das Caixas de Poupança Alemãs), ou aumentado as taxas de crédito ao setor privado. Esta via foi a preferida pelos bancos comerciais dinamarqueses aquando da introdução pelo Banco Central da Dinamarca de taxas de depósitos negativas em 2012.
Por outro lado, ainda que a banca comercial retire todos os depósitos junto do BCE, não é garantido que a liquidez seja canalizada para crédito ao setor privado. Os bancos podem preferir investir em outros ativos com risco reduzido, tais como o ouro ou obrigações do tesouro alemãs.
Também importa olhar para a experiência da Dinamarca. Esta mostra que o principal impacto da introdução de taxas de depósitos negativas se verificou nos títulos do tesouro de muito curto prazo, que substituíram a função de depósito do banco central, e na taxa de câmbio, que se desvalorizou significativamente. Este era, aliás, o principal objetivo do banco central dinamarquês que, ao reduzir as remunerações, pretendia combater os fluxos de liquidez provenientes do estrangeiro que procuravam um refúgio da crise financeira na zona euro.
Entre junho de 2012, quando a taxa de depósito foi cortada, e dezembro de 2012, a coroa dinamarquesa desvalorizou-se o suficiente para voltar à paridade desejada relativamente ao euro de 7.460, atingindo o principal objetivo de política monetária do banco central dinamarquês.
Neste contexto, parece que a redução das taxas de juro na zona euro, incluindo a taxa de depósito, terá tido como principal objetivo enviar um sinal forte aos mercados de que o BCE está preparado para agir de maneira pouco convencional para combater a inflação baixa, nomeadamente através da desvalorização do euro, que é um fator importante de desinflação na Europa.
Relançar o crédito à economia
Para além da redução das taxas de juro, o BCE introduziu duas medidas importantes. A primeira foi o anúncio de que irá realizar várias operações de refinanciamento de prazo alargado (ORPA), com maturidade até setembro de 2018, mas com a particularidade de estarem relacionadas com a concessão de crédito a particulares por parte dos bancos.
As duas operações iniciais, a realizar em setembro e dezembro de 2014, permitirão aos bancos receberem liquidez até 7% do stock de crédito que concederam ao setor privado até dia 30 de Abril de 2014, excluindo crédito hipotecário. No caso dos bancos comerciais portugueses, os dados do Banco de Portugal sugerem que o montante que poderá ser alocado inicialmente se eleva a cerca 6.800 milhões de euros, enquanto na zona euro o montante inicial rondará os 400 mil milhões de euros.
Numa segunda fase, entre março de 2015 e junho de 2016, o BCE realizará operações trimestrais podendo os bancos solicitar liquidez até um máximo de três vezes o montante de crédito líquido de redenções que tenham concedido ao setor privado, excluindo hipotecas, entre 30 de abril de 2014 e a data da operação de refinanciamento, acima de um valor mínimo que será definido individualmente para cada banco.
A taxa de juro destas operações será a taxa de refinanciamento em vigor, acrescida de dez pontos base. Os bancos serão obrigados a reembolsar a liquidez antecipadamente se não cumprirem as regras relativamente ao crédito líquido. Neste caso, em que o BCE condicionou especificamente as operações, o impacto deverá ser significativo na concessão de crédito ao setor privado na zona euro, cuja contração tem sido um motivo de preocupação para o BCE.
Em Portugal, o stock de crédito líquido ao setor empresarial não financeiro diminuiu mais de 6% em 2013 após uma queda de 5,3% em 2012, o que justifica a quebra significativa do investimento. Ainda assim, o impacto final na economia depende da vontade dos bancos de acederem a estas operações de refinanciamento que são limitativas, burocraticamente exigentes e mais caras do que as operações habituais de refinanciamento.
Às medidas efetivamente concretizadas, o BCE acrescentou a promessa de intensificar o trabalho preparatório relativo à compra de títulos de dívida titularizados, cujos ativos subjacentes consistam em créditos sobre o setor privado, embora não tenha dado indicações sobre uma possível data de implementação.
“Super Mario” volta a salvar a zona euro
O impacto imediato da intensificação de uma política monetária agressiva, ao mesmo tempo que o Banco de Inglaterra e a Reserva Federal norte-americana estão a reduzir os estímulos à economia, deverá ser a desvalorização do euro, que é atualmente um objetivo implícito do BCE. A desvalorização teria o duplo benefício de suportar o aumento da inflação através dos preços do petróleo e dos bens alimentares e apoiar as exportações, que abrandaram no primeiro trimestre e que são a principal esperança para a zona euro sair da crise, agora que a procura interna está severamente condicionada, sobretudo nos países periféricos.
O impacto sobre o crédito é mais difícil de prever, mas deverá, ainda assim, ser positivo, sobretudo graças às ORCA direcionadas. Finalmente, a perceção de que o BCE está pronto para tudo para combater a deflação, a promessa de que tem mais instrumentos à sua disposição se for necessário e a flexibilidade de atuação que demonstrou num momento de crise, apesar da situação muito diferente dos países da zona euro, deverá ter um impacto duradouro nos mercados e na confiança das famílias e das empresas na zona euro.
Após a crise, em 2012, sobre a própria existência do euro, “Super Mario” voltou agora para salvar a Europa do risco de deflação e a história sugere que vai ganhar.