Há poucos grandes devedores, dos que têm passado pelas diversas comissões parlamentares de inquérito, que não digam que pelo menos algumas das propostas vieram dos bancos, com especial relevo para a CGD. Regra geral envolveram financiamentos para a compra de acções. E o caso mais grave foi o que envolveu a designada guerra pelo controlo do BCP.
Na altura todo o processo já era bastante suspeito. João Silvestre, no Expresso, foi revisitar o que se escreveu na altura e é espantoso como estava lá tudo: “As movimentações à volta do BCP já começaram, com algumas forças ligadas ao Governo a darem sinais de que pretendem, com a ajuda da CGD e da EDP, fragmentar o maior banco português”. Estávamos em finais de 2007, já com os primeiros sinais da crise a chegarem dos EUA. Em Janeiro de 2008, Carlos Santos Ferreira e Armando Vara mudam-se da CGD para o BCP.
Não se pode dizer que a comunicação social, com os limites do que pode dizer ou escrever sem o risco de ser desmentido, não tenha dito o que se estava a passar. Mas tudo estava abençoado pelo Governo de José Sócrates, pela CGD de Carlos Santos Ferreira, pelo Banco de Portugal de Vítor Constâncio e até pela EDP de António Mexia e pelo BES de Ricardo Salgado. Quem se tentava opor, como ainda tentou a administração do BPI de Fernando Ulrich, acabou por ceder.
Joe Berardo não é uma vítima – como não o são as famílias Moniz da Maia e Manuel Fino, também envolvidas e falidas na guerra do BCP –, no sentido em que tinha de saber o que andava a fazer e o que poderia ganhar com o que concordou fazer, tenha sido ou não ideia do poder que nos governava na altura. Mas não é também o único responsável e provavelmente nem é o mais importante.
Os que falharam escandalosamente foram os que tinham como obrigação proteger o dinheiro dos depositantes. Ou seja, os gestores, designadamente da CGD, que usaram o dinheiro do banco para travarem guerras de controlo da concorrência, no caso concreto do BCP. E esses responsáveis da CGD foram, na altura, Carlos Santos Ferreira, Armando Vara e Francisco Bandeira e ainda António Maldonado Gonelha. No processo de Berardo, Carlos Santos Ferreira é o único arguido.
Essa administração da CGD tem ainda hoje contornos pouco claros. Vítor Martins era o presidente da CGD quando José Sócrates sobe ao poder. O primeiro ministro das Finanças de Sócrates, Luís Campos e Cunha demite-se em Julho de 2005 e, nem duas semanas depois, já com Fernando Teixeira dos Santos como ministro das Finanças, Vítor Martins é demitido e é então entram para a gestão do banco público Carlos Santos Ferreira, Armando Vara e Francisco Bandeira. Teixeira dos Santos pagará caro esta sua cedência. A partir daí a CGD passa a ser um instrumento do Governo, como tem sido claro em vários processos, desde a Artlant – o investimento ruinoso em Sines – a Vale de Lobo, passando pelos financiamentos para a compra de acções, entre eles Berardo mas também Manuel Fino.
Um dos argumentos que se utiliza para justificar alguns destes empréstimos para comprar acções – e Carlos Santos Ferreira já o usou – é que se tratava de uma prática comum, emprestar dinheiro para comprar acções. Sem dúvida que sim. Essa prática começou com as privatizações, quando até alguns incautos cidadãos comuns cometeram o erro de pedir crédito – um encargo fixo – para adquirem acções – um activo de valor variável. O próprio BCP, na sua fúria de crescer e antes de se desfazer, condicionava o crédito à habitação à compra de acções do banco. E o próprio BCP tinha accionistas que só o eram com o dinheiro do banco, banqueiros sem capital e muita dívida. (Como jornalista lembro-me de, na altura questionar essa prática junto do supervisor e a questão era totalmente desvalorizada).
O sinal de que não era assim tão normal é não apenas o montante envolvido, mas também o facto de alguns banqueiros não terem seguido as mesmas práticas em grande dimensão e terem até feito denuncias públicas. Foi o caso, por exemplo, de Fernando Ulrich que lhes chamou “accionistas mutuários”, questionando o real capital do BCP mas apenas no tempo da transição de Jardim Gonçalves.
No caso da CGD, durante algum tempo nem se teve a noção do montante de crédito que tinha como garantia acções. Em Outubro 2008, de acordo com os alertas feitos pela Deloitte sobre as contas de Junho de 2008, o montante total de créditos concedidos pela CGD que estavam garantidos por acções era de 4,5 mil milhões de euros e já não tinham garantias suficientes (recorde-se que estamos a entrar na tempestade provocada pela falência da Lehman Brother’s e a CGD já estava a evidenciar problemas com esses créditos). A Deloitte dirá várias vezes que são “significativos” os créditos garantidos por acções, uma situação crescentemente preocupante face à desvalorização accionista que se seguiu após a crise financeira.
O primeiro grande empréstimo da CGD a Joe Berardo é de Maio de 2007, 350 milhões de euros. E é nesse ano que Berrado se torna num dos maiores accionistas do BCP, com cerca de 7% do capital, sendo decisivo para a mudança de administração que vai acontecer no fim do ano, quando o ex-presidente da CGD que lhe viabilizou o empréstimo se torna presidente do BCP.
O que se passou nesses anos, entre finais de 2005 e 2007, estamos ainda hoje a pagar com dinheiro, a perda de emprego de algumas pessoas na banca e com a justiça a chegar agora mais de uma década e media depois. Aprendemos alguma coisa? Provavelmente não. A tentação dos governos de usarem o dinheiro dos contribuintes para os seus sonhos e convicções pessoais aconteceu na altura de forma nunca vista, mas não estamos livres de que aconteça de novo, especialmente quando não se respeita a independência das instituições.
Joe Berardo passou de herói e mecenas das artes a vilão. Longe vão os tempos em que fazia um anúncio para o BCP como um homem que se construiu a si próprio. Certo é que nada do que fez, o fez sozinho, não foi ele que assinou os empréstimos que serviram como principal propósito o controlo do BCP. Viu-se depois apanhado na teia que teceu e deixou tecer e tentou tudo para colocar a salvo a sua colecção de arte.
Com a ajuda do seu advogado André Luís Gomes – que durante anos foi administrador do BCP onde Berardo também deve dinheiro sem que ninguém achasse isso estranho –, construiu um conjunto de associações que deu e tirou aos bancos com diluições de capital e alteração de estatutos. Uns escondem-se em off shores, outros, como Berardo, em associações que, vale a pena perceber, praticamente não são escrutinadas.
Numa altura em que os heróis do início do século XXI são transformados em vilões, vale a pena manter o distanciamento e perguntar: a quem cabia defender o banco? Não pode ser apenas uma mentira a defesa que tem sido usada por alguns grandes devedores de que cederam às propostas dos bancos. Para eles e para os empresários em geral fica a lição do preço que se pode pagar por cumplicidade com agendas de poder dos governos. Mas há gestores que terão de ser responsabilizados, ou a justiça apenas se fará pela metade. Até para que não se caia na tentação de usar as instituições e as empresas do Estado para as agendas eleitorais ou partidárias que se transformam numa factura imensa no futuro. E hoje, neste presente, estamos a ver o futuro dessas guerras de poder e da fúria de tudo controlar do Governo de José Sócrates.