1 Aquando da decisão instrutória da Operação Marquês ouvimos os tudólogos do costume: os megaprocessos não resultam. Como é habitual nos demagogos, além do diagnóstico manipulado, a solução era simples e passava por ‘fatiar’ o processo — separá-lo em diversas acusações para ter uma decisão célere e em tempo útil.

Como é costume, a realidade prova que as coisas não são assim tão simples.

Veja-se o último exemplo: o caso Banco Privado Português (BPP) — que ‘ressuscitou’ na passada sexta-feira com uma pena de prisão efetiva de 10 anos decretada em primeira instância para João Rendeiro (ex-líder do BPP) e mais dois ex-administradores do banco pelos crimes de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e branqueamento de capitais por alegadamente os gestores terem atribuído a si próprios cerca de 30 milhões de euros em prémios que o tribunal considerou indevidos.

2Para percebermos o que aconteceu, comecemos pelo caso que está mais perto do trânsito em julgado e que está relacionado com a alegada falsificação da contabilidade do BPP. Trata-se de uma acusação de falsidade informática (um crime que permite uma pena mais pesada do que a falsificação de documento e que reflete a alegada falsificação feita por meios informáticos) que foi deduzida em junho de 2014 contra João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital.

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Depois de várias peripécias processuais, os arguidos foram condenados em outubro de 2018 a pena suspensa pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Após recurso do MP, a Relação de Lisboa mudou em julho de 2020 a pena suspensa de cinco anos e 8 meses aplicada a João Rendeiro para prisão efetiva, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a janeiro de 2021 a pena da segunda instância e o ex-líder do BPP teve de recorrer para o Tribunal Constitucional onde ainda está pendente o recurso.

Moral da história: quatro anos depois da acusação houve uma sentença com pena suspensa da primeira instância, seis anos depois da acusação a Relação de Lisboa aplicou prisão efetiva e o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a pena seis anos e seis meses após o encerramento do inquérito.

O mesmo padrão repete-se nos outros processos, com a exceção do quarto caso que só teve acusação mais recentemente.

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O caso BPP é um bom exemplo de como o processo foi ‘fatiado’ em quatro processos diferentes por decisão dos procuradores Inês Bonina e Hugo Neto mas o resultado é exatamente o mesmo que um megaprocesso: os processos arrastam-se nos tribunais em condenações, absolvições, incidentes processuais, nulidades e repetições de julgamento. Consequência? Nenhum dos quatro processos com factos que remontam ao período entre 2003 e 2008 transitou em julgado até à data de hoje, 17 de maio de 2021.

Que conclusões podemos retirar daqui? As mesmas que retiramos de outros processos de criminalidade económico-financeira:

  • coletivos de julgamento na primeira instância que, num misto de falta de preparação técnica e insensibilidade, demoram muito tempo a julgar os processos e são obrigados pela Relação de Lisboa a repetir os mesmos devido a erros técnicos.
  • incidentes processuais que permitem às defesas ’emperrar’ o normal andamento dos processos;
  • um sistema judicial, em suma, que não está minimamente preparado para casos de ‘colarinho branco’.

A enorme dilação temporal entre a data dos factos e o trânsito em julgado acontece neste caso do BPP, como se verifica em muitos outros casos. Como o Face Oculta — o principal arguido e o seu sobrinho continuam com recursos pendentes — ou o caso BPN — que também ainda não transitou e o principal arguido já faleceu.

Também podemos analisar todos os outros casos em que houve prisões efetivas, como os casos dos arguidos do Face Oculta (Armando Vara, Paulo Penedos e Paiva Nunes), do BPN/Homeland (Duarte Lima) ou Isaltino Morais e concluiremos que os autos demoraram cerca ou mais de 10 anos a transitarem em julgado. Um período de tempo incomensuravelmente superior aos casos de criminalidade comum e de sangue — que não costumam demorar mais de dois ou três anos (e se tanto) a chegarem ao fim.

Independentemente do resultado ser condenação ou absolvição, o que interessa é que o processo seja resolvido em tempo útil em nome da paz social e dos direitos dos arguidos.

4 É precisamente através da análise pormenorizada de todos estes casos e a constatação óbvia de que há uma profunda desigualdade em termos de celeridade que me leva a concluir o seguinte: é inevitável a criação de um tribunal de competência especializada e com competência territorial alargada.

Tal não acontecerá agora na Estratégia Anti-Corrupção porque a ministra Francisca Van Dunem seguiu o conselho do grupo de trabalho por receio de problemas constitucionais. Mas mais tarde ou mais cedo, tal instância de julgamento será real — e sem entraves constitucionais, obviamente.

Por uma razão simples: depois do trânsito em julgado (ou prescrição) dos casos Face Oculta ou BPN, outros processos (como a Operação Marquês ou o Universo Espírito Santo) se seguirão numa repetição ad nauseam dos mesmos problemas de morosidade. Seja por responsabilidade direta do sistema, seja pelos ‘pauzinhos na engrenagem’ que as defesas têm direito por lei.

É, por isso, uma questão de tempo até concluirmos o edifício jurídico que se iniciou em 1999 como a criação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal e do Tribunal Central de Instrução Criminal — que a ministra Van Dunem, e bem, vai manter e reforçar.

Até lá, teremos que nos contentar com os passos positivos da justiça negociada proposta pela Estratégia Anti-Corrupção que também visa a promoção da eficácia e da celeridade do sistema. Mesmo que os mesmos tenham a oposição declarada do deputado Jorge Lacão e de outros socialistas, como já tinha antecipado nesta coluna.