1Nos vários debates em que participei nos últimos anos sobre Justiça, há um que me ficou na memória pelas afirmações de uma proeminente jurista a propósito da Operação Marquês. Dizia Inês Ferreira Leite no “Expresso da Meia-Noite” (11 de novembro de 2019, ver aqui) que “a única forma de combater efetivamente a corrupção (…) é através da educação. Isso leva tempo. Nós não estamos aqui a fazer nada de novo. A Itália já fez tudo isto: processos de corrupção, com políticos e ex-políticos, e com penas exemplares. E o resultado foi péssimo, do ponto de vista judicial, político e social. E tiveram um efeito zero na diminuição da corrupção em Itália. Quem conhece história dos processos, sabe que o caminho que Portugal está a fazer com este processo [Operação Marquês] não conduz a lado nenhum.”

Na prática, esta narrativa de Inês Ferreira Leite, que além de professora na Faculdade de Direito Lisboa foi indicada pelo PS e eleita pela Assembleia da República para vogal do Conselho Superior da Magistratura no mandato em vigor, pretende afirmar o seguinte: a origem de Berlusconi, Salvini e dos restantes populistas italianos reside no combate à corrupção das magistraturas italianas nos anos 90 através da Operação Mãos Limpas e de muitos outros casos.

O que significa que, de acordo com a mesma tese, a “corrupção faz parte da nossa vivência”, faz parte do sistema, logo o combate à dita cuja só vai enfraquecer a democracia a prazo, arrasando a credibilidade dos partidos incumbentes e promovendo, por arrasto, as forças populistas que são inimigas da democracia.

Verdade seja dita que esta narrativa não é apenas da professora Ferreira Leite. A mesma corresponde a um pensamento real não só de uma parte importante da comunidade jurídica, como também (e mais importante) de uma parte importante do Grupo Parlamentar do PS.

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Vem isto a propósito da Estratégia Nacional Contra a Corrupção que, por proposta da ministra Francisca Van Dunem, o Conselho de Ministros aprovou na última 5.ª feira.

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Começo por dizer que a narrativa de Inês Ferreira Leite é uma perversa inversão do problema da corrupção. O que obviamente faz crescer o populismo, como podemos assistir em Portugal desde os anos 90, é a perceção da comunidade de que o combate à corrupção é muito ineficiente e de que “tudo prescreve”.

Apesar de ter uma ideia clara de que tivemos evoluções significativas no combate à corrupção nos últimos 45 anos, como evidenciei no meu último livro, não posso ignorar que aquela percepção existe na comunidade e que potencia o afastamento e a desconfiança dos cidadãos face às instituições. E a melhor de fomentar a reaproximação dos cidadãos não é com projetos educativos (que são meritórios mas que só dão resultados a longo prazo) mas sim uma forte repressão penal e social e a rejeição clara de que a corrupção seja normal ou que faça parte da nossa cultura.

É verdade que a Estratégia de Van Dunem assegura o lado progressista do pensamento de Ferreira Leite, apostando seriamente na educação (incorporando a consciencialização da corrupção nos planos lectivos do sistema educativo) e na prevenção (alargando ao setor privado a obrigação de instrumentos preventivos que já existem no setor público). Mas também dá igual importância aos mecanismos de justiça negociada para promover uma maior celeridade e eficiência da repressão penal da criminalidade económico-financeira.

Como Francisca Van Dunem afirmou em entrevista ao Observador em setembro, “a repressão é indispensável como modelo de prevenção geral. Só teremos uma prevenção geral efetiva se tivermos a capacidade de aplicar o Direito em tempo útil para termos sanções dissuasoras”.

3 Como já escrevi aqui, os mecanismos de justiça negociada (ou de direito premial) já existem na nossa lei mas simplesmente são inoperantes. O que se pretende é flexibilizar e alargar a sua utilização em dois aspetos:

  • permitir a colaboração entre arguidos ou suspeitos e a Justiça, de forma a que o titular da ação penal (o Ministério Público) tenha acesso mais prova material; em contrapartida, quem colaborar poderá ganhar a dispensa ou a atenuação de pena;
  • implementar acordos de sentença na fase de julgamento, em que o arguido poderá confessar integralmente e sem reservas os crimes que praticou e beneficiar de uma pena reduzida.

Quais as vantagens destas propostas? Entre outras, estas três:

  • os acordos na fase de inquérito poderão permitir quebrar o pacto de silêncio que existem sempre entre corruptor e corrompido e permitir, como já descrito acima, o acesso a mais prova material;
  • potenciará a celeridade e a eficácia do sistema penal — o maior problema atual — permitindo inquéritos e julgamentos mais rápidos.
  • com uma justiça mais célere e eficiente, o Estado poupará meios e recursos. Não há nada mais caro e danoso para a paz social do que processos intermináveis.

Apesar de ainda não conhecer o desenho final das propostas legislativas que o Governo vai submeter ao Parlamento, tenho consciência que as propostas poderão ficar aquém do desejável. Por exemplo, segundo a ministra da Justiça afirmou este domingo ao Público, a dispensa de pena por acordo na fase de inquérito apenas estará disponível para os autores dos crimes de corrupção lícita, ficando os autores do crime de corrupção ilícita (a maior parte dos crimes de corrupção têm esta componente) apenas com um ‘prémio’ possível de atenuação especial da pena. O que não é muito atraente para quem queria colaborar com a Justiça.

Seja como for, é preferível que lei seja melhorada (com hipótese de ser aprofundada noutra legislatura) do que tudo ficar na mesma.

O mesmo se diga sobre outras ideias que ficaram excluídas da Estratégia Nacional Contra a Corrupção, como a criação de um tribunal de competência especializada e territorialmente alargada para julgar os casos de criminalidade mais complexa (e não apenas determinado conjunto de crimes) ou a criação de um crime de enriquecimento injustificado — defendido, por exemplo, pela Associação Sindical de Juízes.

Ou até mesmo outras ideias que não foram sequer consideradas, como uma reforma do sistema de recursos e incidentes processuais (que permitisse uma maior aceleração processual) ou o aumento dos poderes dos juízes para termos julgamentos igualmente mais céleres.

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Certo é que, mesmo sem essas mudanças mais polémicas, o pacote legislativo da Estratégia Nacional Contra a Corrupção que o Executivo submeterá agora à Assembleia da República enfrentará sérios obstáculos. E porquê?

Porque o contexto parlamentar do PS e do PSD não é o mais favorável ao reforço do combate à corrupção. Se conjugarmos o pensamento ideológico que referi ao abrir este texto (que desvaloriza e receia o combate à corrupção por via da repressão judicial), com o pensamento anti-magistraturas que caracteriza a política de Justiça da atual liderança do PSD, percebemos facilmente onde estão os obstáculos.

No PS, o deputado Jorge Lacão voltará a ter mais uma oportunidade para tentar usar o seu peso político (com o beneplácito da líder parlamentar Ana Catarina Mendes) para criar tais obstáculos, como já o fez no passado por várias vezes, nomeadamente na discussão do Estatuto do Ministério Público.

Já o PSD, tem o casal maravilha Mónica Quintela (porta-voz para a Justiça) e Rui da Silva Leal (membro do Conselho Superior do Ministério Público) a ajudar Rui Rio a reforçar os seus preconceitos primários e cesaristas sobre as magistraturas e o funcionamento da Justiça. O PSD de Barbosa de Melo, que ajudou a moldar o atual sistema político-penal e a construir o Estado de Direito na Assembleia Constituinte de 75/76, devia corar de vergonha ao ver o estado atual do PSD no que à Justiça diz respeito.

Não tenho dúvidas que estas forças conservadoras do PS e do PSD tentarão colocar o maior número possível de obstáculos à aprovação da Estratégia, tentando aproveitar-se do enfraquecimento político que Francisca Van Dunem sofreu com o caso do procurador europeu.

Resta saber o que fará o primeiro-ministro António Costa — que construiu uma imagem política de grande defensor do combate à corrupção. Vai colocar o grupo parlamentar do PS na ordem e apoiar a sua ministra da Justiça, permitindo-lhe ganhar uma nova força política para o resto do mandato? Veremos nas próximas semanas.