As propostas do Governo sobre a já anunciada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção acabaram de chegar ao Parlamento, mas já há críticas a algumas das medidas que vão integrar o pacote e vindas do PS. Jorge Lacão escreveu um artigo de opinião (e prometeu que não será o primeiro) a afirmar que “as medidas apresentadas respondem apenas a uma limitada dimensão dos problemas da justiça” e de colocarem em causa garantias constitucionais. Não é o único da bancada a apresentar reservas.

Num artigo publicado no jornal Público, o deputado socialista levanta dúvidas sobre “a reconfiguração do instituto legal da dispensa de pena aplicável ao agente arrependido (nos crimes de corrupção)”, defendendo que essa espécie de delação premiada impede o juiz de “avaliar quaisquer circunstâncias do caso”. “Onde fica a ponderação do juiz na fundamentação da aplicação da lei ao caso concreto?”, questiona o deputado que diz mesmo que a dispensa de pena é “hoje prevista apenas para bagatelas penais (crimes com penas não superiores a seis meses), cruzada com a possibilidade processual de arquivamento do processo”.

A proposta do Governo que já está no Parlamento prevê que, nos crimes de corrupção, o “agente é dispensado de pena sempre que tiver denunciado o crime antes da instauração de procedimento criminal e nas situações previstas”.

Também o deputado da bancada do PS Pedro Bacelar de Vasconcelos tem dúvidas sobre esta figura, embora não seja já tão taxativo com a medida como Lacão. Ao Observador, o deputado e constitucionalista assume uma “posição crítica quando à delação premiada”, embora admita que possa ser possível encontrar uma “formula que contribuindo para a eficácia do combate ao crime de corrupção possa assegurar os direitos fundamentais”.

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O deputado diz ao Observador que “estas são preocupações partilhadas no grupo parlamentar”, assumindo que têm mesmo “larga consonância”, estas mesmas dúvidas e acrescenta as suas em relação ao enriquecimento injustificado. Outro deputado do partido diz ao Observador que dúvidas do género existem mesmo dentro da direção do grupo parlamentar: “Mas a proposta é do Governo e é para aprovar”, comenta.

Bacelar de Vasconcelos antevê, no entanto, que este debate vai levar tempo: “A conclusão não me parece provável para breve. É complexa”, adianta ao Observador prevendo que seja difícil que se possa chegar ao fim do processo legislativo antes do verão. Um deputado socialista faz outra leitura sobre a falta de urgência do partido em acelerar o processo: Até às autárquicas ninguém quer votar isto. Esta matéria traz o caso Sócrates à tona e não é do interesse do PS continuar com o caso a lavrar” num contexto eleitoral.

Outro dos pontos que é alvo da crítica de Lacão, no artigo publicado esta terça-feira, tem a ver com o alargamento aos titulares de cargos políticos da pena acessória de proibição de exercício de função entre dois e 10 anos, mesmo se houver isenção de pena. Para o deputado do PS esta ideia do Governo “abre a porta à possibilidade de decretar o ostracismo cívico em termos que, na prática, arredam definitivamente o visado da possibilidade de exercício de direitos políticos fundamentais”.  Além disso, diz Jorge Lacão, no caso de eleições para a Assembleia da República, “a proposta viola a determinação constitucional sobre inelegibilidades, que devem obrigatoriamente constar da lei eleitoral, uma lei de valor reforçado a exigir normas genéricas e não efeitos decididos por decisão singular de um tribunal”.

Neste ponto específico, a proposta do Governo determina que uma “pena acessória de proibição do exercício de funções possa ser aplicada aos agentes dos crimes de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção cuja pena tenha sido dispensada”.

Sobre tudo isto o deputado tem duas conclusões mortíferas para António Costa. A primeira é que as “ditaduras viram costas às garantias fundamentais. Que uma democracia o faça constituirá um lamentável sinal dos tempos”, a segunda vai direto ao nervo socialista em matéria de corrupção: José Sócrates. Lacão considera que o discurso do “mata e esfola” dos populistas, “há caminhos que, uma vez percorridos, se tornam muito dificilmente reversíveis. Os que agora se propõem, se concretizados, entrarão provavelmente nessa senda. Mas um dia, se as parcas se soltarem, por previsivelmente não baterem à nossa porta, sempre poderemos repetir com tranquila consciência que ‘à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. Soa sempre bem”, remata o deputado atirando diretamente à frase usada por Costa para se desviar do caso Sócrates. E Lacão promete voltar à carga em novo artigo.

Jorge Lacão está em rota de colisão com a ministra da da Justiça  desde 2018, altura em que se debateu o Estatuto do Ministério Público e o deputado defendeu a necessidade de alterar a composição do Conselho Superior do Ministério Público. O socialista até atacou a ministra Van Dunem por esta manter, na proposta apresentada ao Parlamento sobre o estatuto, o equilíbrio de forças naquele órgão, com 12 procuradores e sete não magistrados. Jorge Lacão acabou desautorizado pelo partido que veio assumir uma posição oficial sobre o assunto afirmando que o PS nunca defendeu que os magistrados representassem uma minoria no CSM.