A partir de certa idade, estamos particularmente bem colocados para compreender o sofrimento humano. Qualquer um de nós poderia escrever um livro intitulado “História das Minhas Calamidades”, mesmo que as calamidades em questão não sejam tão radicais como as do autor da obra original. Essa nossa experiência particular do sofrimento, que obviamente varia, na forma e na matéria, de indivíduo para indivíduo, permite-nos, de uma certa maneira, sentir de dentro o sofrimento dos outros. Schopenhauer elevou essa percepção a uma dimensão metafísica que é central na sua filosofia.
Há o sofrimento que faz, de modo inevitável, parte da nossa própria existência. Aquele que vem da experiência do desamor, por exemplo, da dor dos que nos são próximos ou da aproximação da morte, particularmente da morte dolorosa. E há o sofrimento excepcional provocado pelas grandes catástrofes. A guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia e o recente terramoto na Turquia e na Síria são um bom exemplo desse sofrimento em escala gigantesca. As televisões confrontam-nos com imagens de destruição e dor e com as de humanos que fazem tudo o que podem para salvar outros humanos. Podíamos ser nós, se tivéssemos tido a pouca sorte de estar ali, naquele momento. Qualquer um pensa isto, sem quase se dar conta que o pensa.
Este primeiro pensamento é idêntico nos casos da guerra e do terramoto. Os pensamentos que vêm a seguir são, no entanto, diferentes. No caso do terramoto, esse pensamento é quase o primeiro e o último. Pode repetir-se, pode ser mais ou menos intenso, mas não muda na substância. No caso da guerra, a situação é diversa. É diversa porque supomos uma intenção humana que está por detrás desse sofrimento. E a suposição dessa intenção traz consigo novos pensamentos que, por sua vez, arrastam outros. E nesse processo vamos fazendo juízos sobre as coisas, escolhendo valores, e cada nova visão do sofrimento vem mais tingida de juízos e valores.
É verdade que, em tempos passados, os grandes desastres naturais faziam-nos igualmente pensar em Deus e nos pecados dos homens. Mas, hoje em dia, é uma solução rara e, de resto, não terá sido nunca coisa idêntica ao que se passa com os pensamentos suscitados pela guerra. Há, no entanto, em muitos discursos contemporâneos sobre catástrofes naturais, uma repescagem desse tal esquema antigo sob a forma da atribuição de uma culpa às acções humanas que estarão na origem das alterações climáticas e, por aí, das catástrofes naturais. Como se procurava dantes inocentar Deus do sofrimento humano, procura-se agora inocentar a natureza, designando-nos a nós mesmos como culpados. E as ciências substituem a teologia. Não é, mais uma vez, a mesma coisa que se passa com a guerra. Na guerra, a suposição de uma intenção humana por detrás do sofrimento é directa; no caso da suposição de uma acção humana por detrás das catástrofes naturais é necessário passar pela longa mediação de uma teoria.
O que é inegável, no entanto, é que possuímos uma tendência natural para supor intenções, mais ou menos determinadas e conscientes, por detrás de acontecimentos catastróficos naturais. É uma espécie de ilusão natural da nossa razão, como se a suposição da intenção fosse a única maneira de fazer sentido das coisas. Nada tem a ver com as ciências nem com a própria ciência como projecto. Mas corresponde a um modelo arcaico de inteligibilidade que nos permite a descoberta ilusória de um sentido naquilo que nos causa sofrimento. E esse sentido ilusório conduz-nos a construir pensamentos que prolongam o primitivo pensamento “poderia ter sido eu a encontrar-me ali”, o único que decorre naturalmente do sem-sentido da catástrofe.
Um teólogo medieval, Gregório de Rimini, via a teologia como uma disciplina que criava um hábito de acreditar, um habitus creditivus, que estimulava o crescimento da fé. Quaisquer que sejam os méritos da doutrina da origem antropogénica das alterações climáticas (e, em vários casos, ela parece-me de uma enorme plausibilidade), ela funciona também, à sua maneira, em muita gente, como a teologia para Gregório de Rimini: estimula uma crença na ideia de que uma intenção, mais ou menos directa, preside às catástrofes naturais. A nossa psique procura em tudo fazer sentido das coisas. O sem-sentido não é por ela absorvível.
E isso manifesta-se até no nosso dia-a-dia. A tendência para atribuir indiscriminadamente o nosso próprio sofrimento a uma intenção alheia é uma tendência generalizada. Nos nossos dias, a cultura woke dá uma dignidade teórica a essa inclinação e a paranóia exibe o modelo patológico por excelência desta atitude. Basta pensarmos um pouco neste caso radical para nos darmos conta que não devemos usar a nossa faculdade de pensar para lá dos limites que os casos particulares nos impõem, sob pena de nos enganarmos a nós mesmos. Até porque esta suposição de intenção generalizada, ao eliminar ilusoriamente o sem-sentido que preside a muitos acontecimentos, tem em muita gente o curioso efeito de inibir um verdadeiro juízo de valor nos casos em que há declaradamente uma intenção consciente na causa dos acontecimentos. Exemplo dessa inibição é precisamente a atitude de muita gente para com a responsabilidade exclusiva de Putin na guerra da Ucrânia. À força de procurar um sentido invisível, tornamo-nos cegos para com o óbvio visível que está mesmo à nossa frente. E cegos também para o sofrimento humano mais patente.