A facilidade de acreditar é um tema inesgotável, pelo menos tão inesgotável quanto a dificuldade em dizer “não sei”. De resto, as duas coisas andam intimamente ligadas. Acredita-se facilmente para evitar tristes confissões de ignorância (agarramo-nos às crenças dos outros como quem se quer salvar de um afogamento na dúvida) e disfarça-se a ignorância para poder partilhar as certezas colectivas que julgamos dignas de unanimidade.

Sempre foi assim, não há nisto nada de novo. A cabecinha humana funciona assim. O que varia, certamente, são os objectos preferenciais da vontade de acreditar e o grau de intensidade dessa vontade. Por estes dias, os objectos favoritos das crenças mais intensas andam à volta das chamadas “alterações climáticas” (previamente: “aquecimento global” – e, ainda antes, “arrefecimento global”, lembram-se?) e da Covid. São objectos tão interessantes como quaisquer outros e permitem-nos descobrir um dos elementos fundamentais da facilidade de acreditar.

Hemingway dizia, no seu livro sobre as touradas (Death in the Afternoon), se a memória não me falha, que há duas maneiras fáceis de escrever sobre um assunto: sabendo muito acerca dele – ou não sabendo nada. Se sabemos alguma coisa, mas aquém de um certo patamar, estamos em maus lençóis – e duvidamos. Ora, a vontade de acreditar procura as vias mais fáceis, descartando a difícil posição intermédia de que fala Hemingway. E, das duas soluções que restam, é óbvio que não saber nada está mais ao alcance de qualquer um do que saber muito.

O que é surpreendente e verdadeiramente interessante é que esta última solução favorece extraordinariamente a intensidade da crença. Como se a ausência de um conhecimento real, da suficiência objectiva, estimulasse a crença sob a forma de uma suficiência subjectiva toda-poderosa. A suficiência subjectiva torna-se avassaladora e imune a qualquer objecção, girando sobre si mesma. A ignorância protege absolutamente da dúvida e proporciona a alucinação da certeza. Se o outro não partilha a nossa certeza, tal só se pode dever a obscuros e inconfessáveis interesses ou a inomináveis defeitos de carácter.

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Deixemos de lado as “alterações climáticas” e fiquemo-nos pela Covid. Os dois exemplos mais interessantes são o do “anti-vacinismo” e o daqueles que, ao mínimo sinal de dúvida quanto à legitimidade do controle político das liberdades dos cidadãos, não hesitam em condenar o que chamam “negacionismo”. Ambos são manifestações da hipertrofia da crença que apenas a ignorância permite. Os “anti-vacinistas” vêem em todo o lado uma dupla conspiração: a invenção de uma doença pelos poderes públicos e o apetite imoderado pelo lucro das farmacêuticas. Os críticos do “negacionismo” só têm olhos para um conluio generalizado que visaria a negação da ciência (daquilo que, apressadamente, traduzindo à bruta o inglês, chamam “evidência científica”) – daí os “negacionistas” serem irmãos de armas dos “terraplanistas”, etc.

O principal motor da hipertrofia da crença, o seu fundo comum, é, em ambos os casos, uma das mais constantes paixões, ou emoções, humanas: o medo. Os “anti-vacinistas” têm medo que as vacinas lhes causem doenças que de outro modo não teriam. Os inimigos jurados dos “negacionistas” receiam que multidões conspiratórias, ou simplesmente irresponsáveis, os infectem mortalmente e propõem-se vigiar sem brandura, e com indisfarçável gosto pela dominação, quem lhes inspira tal temor.

Ora, longe de mim censurar a velha paixão do medo. O medo é uma emoção utilíssima a vários títulos, sem a qual nenhum ser vivo sobreviveria. Mais imediatamente, é uma obrigação de solidariedade humana tentar compreender os medos dos outros. Além disso, é racional, em certos graus, ter medo. O problema é que, nestes dois casos, a racionalidade teórica não é acompanhada de uma racionalidade prática. É teoricamente racional recear certos efeitos das vacinas. Como é teoricamente racional ter medo de ser contaminado por um vírus. Acontece que, sob o ponto de vista da racionalidade prática, não é racional recusar um meio que comprovadamente nos protege de uma contaminação que em muitos casos é fatal, se os riscos que esse meio provoca são ínfimos. Tal como não é racional exigir uma segurança absoluta em matérias da vida quotidiana. Tal exigência, como Locke há muito lembrou, condenar-nos-ia à abstenção de qualquer acção e, no fim, por exagero de prudência, à morte certa.

A facilidade de acreditar, com a sua intensidade indomável e tendencialmente, mesmo que ingenuamente, fanática, faz-nos esquecer esta verdade básica em nome de uma suficiência subjectiva que absolutamente se basta a si mesma. Ninguém, neste estado de espírito, ousa alguma vez dizer “não sei”, até porque esse estado de espírito existe precisamente para nos evitar esse incómodo pensamento. E, no entanto, para uma pessoa medianamente informada, o que é mais legítimo é, em muitos casos, dizer: “não sei”.

E, sem paradoxo nenhum, por uma prudência distinta daquela que é exclusivamente ditada pelo medo, confiar na doutrina dos que mais sabem. Certamente que, em casos em que as instâncias políticas e as instâncias científicas se afectam umas às outras – o que acontece com as “alterações climáticas” e com a Covid –, essa confiança torna-se problemática: a noção de “saber” torna-se desagradavelmente imprecisa. Mas a vida está cheia de situações deste tipo, que pedem crenças difíceis. A vida é difícil. A facilidade de acreditar, própria aos mendigos de certezas, além de outras coisas, mente à vida, é uma mentira da vida.