Em Março de 2020 as redes sociais foram inundadas de imagens fortes em que se explorava, até à náusea, o caos nas urgências hospitalares no Norte de Itália. É factual que a Covid-19 e a sua rápida expansão colocaram, no início da pandemia, sob pressão os sistemas hospitalares, tendo as imagens difundidas até à náusea de um hospital em Bérgamo, na Lombardia, em estado caótico e sem capacidade de resposta, funcionado como alerta à navegação para toda uma série de governantes que, até esse momento, haviam menorizado a ameaça, visível não só nas palavras, mas sobretudo, na ausência de medidas e ações adequadas para mitigar o impacto da expansão do vírus. Por esses dias outras narrativas mais fantasiosas ganharam tração, desde logo, teses que “demonstravam” que a China estava a ser arrasada por um vírus que havia escapado de um laboratório experimental, contaminando a população de forma descontrolada, até “relatos” alarmistas gravados em “nome próprio”, mas subtilmente anónimos, onde se descreviam “catástrofes” que estariam a ser “escondidas” das autoridades, que circulando massivamente por WhatsApp ou aplicações semelhantes, lançaram um manto de fumo sobre o sentido da verdade que ainda hoje não foi possível reabilitar. Rapidamente, e fruto da força que a imagética tem num tempo onde as mensagens são cada vez mais simplistas e menos verbalizadas, o pânico instalou-se e, sem que os Estados o decretassem, as populações recolheram às suas casas, evitando o espaço público. Por todo o lado, o medo deu lugar a apelos das massas exigindo dos Estados ações e respostas políticas que fossem aptas a vencer a batalha contra a natureza. Neste contexto turbulento, vários media tradicionais, em vez de funcionarem como contrapeso em relação à desinformação, na ausência de fontes, escolheram ser caixas de ressonância das redes sociais, amplificando e legitimando uma escalada de medo sobre o qual, vale a pena, um ano e meio depois, refletir. À época passaram despercebidos os relatos da Europol que assinalavam que, desde o início do ano de 2020, agências de desinformação associadas à Rússia haviam inundado em larga escala as redes sociais com narrativas desinformativas, em várias línguas, causando dificuldades significativas na gestão do início da pandemia, sobretudo, no que diz respeito ao medo sobre o efetivo carácter letal do vírus e as suas reais consequências.

Nos últimos 16 meses temos vivido restrições às nossas liberdades individuais que, uns dias antes do início da pandemia, só anteciparíamos em cenários romanceados ou distopias da Netflix ou da HBO. Desde os primeiros meses do ano passado que o vírus identificado na China foi ganhando terreno e, apesar de inicialmente ignorado nas suas consequências, acabou por exibir as inúmeras fragilidades, não apenas do corpo humano, em muitos casos inábil a descodificar as instruções dadas ao sistema imunológico, mas dos alicerces e resiliência das sociedades pós-modernas, incapazes de liderar com fenómenos que não compreende ou domina.

Segundo os números oficiais, a pandemia terá matado 4,3 milhões de pessoas em todo o mundo. Em Portugal terão morrido, até hoje, 17,5 mil pessoas, num universo onde quase um milhão terão sido sinalizadas com um teste positivo. Os números são relevantes e mostram que a Covid-19 não é uma ameaça negligenciável. A distribuição da mortalidade e a sua incidência deveriam, em qualquer caso, convidar-nos a encarar a resposta ao vírus com soluções que não ferissem de morte a racionalidade, a razão humana, a qual, recordo, esteve na génese da rutura histórica que inspirou a modernidade, a emergência da ciência e as sociedades de bem-estar onde o pluralismo, a liberdade e a tolerância assumiram um papel sem paralelo na história da Humanidade. É que, se é um erro desconsiderar o carácter letal da Covid-19, não é possível ignorar os enormes danos que os Estados e governos estão a causar aos cidadãos e aos pilares fundamentais das sociedades democráticas nas estratégias e ações escolhidas para combater o vírus, e que na agenda pública permanecem menorizados. Num mundo onde imperasse a razão e a serenidade, as populações não aceitariam, sem revolta, que consultas e intervenções cirúrgicas fossem adiadas ou até canceladas, durante meses a fio, sacrificando a saúde de todos ao combate a um só vírus. Num mundo onde as consequências das medidas fossem calibradas em função do risco e seguindo critérios inspirados na ciência, não se empurrariam crianças para casa, embrulhadas em máscaras, impedidas de socializar, conviver, praticar desporto e até, de obter as imunidades necessárias, essenciais a um crescimento saudável. Num mundo preocupado com as pessoas não se aceitaria, sem mais, a completa eliminação de liberdades económicas, empurrando para a miséria camadas significativas da população, fruto da destruição do PIB (que, recorde-se, em Portugal atingiu recordes históricos), sem que houvesse evidências que tais restrições seriam estritamente necessárias ou tivessem fundamentos científicos que as justificassem. Num mundo onde morrem milhões de pessoas por causas bem mais letais do que a Covid-19, a racionalidade convidaria a pensar por que razão convivemos bem até hoje com tantas tragédias, tendo escolhido este vírus para tentar travar de uma forma tão significativa a rotação do Planeta. Num mundo que honrasse os milhões de mortos que caíram em várias guerras na defesa das nossas liberdades fundamentais, não se aceitaria a quantidade de restrições acríticas a que diariamente estamos a ser sujeitos, sem qualquer respeito pelo cidadão ou pelas várias conquistas que achávamos que estavam consolidadas à volta daquilo que assumimos serem as nossas democracias. Num mundo mais racional, pensaríamos duas vezes antes de deitar fora o bebé com a água do banho, exigindo dos nossos governantes maior capacidade para combater a Covid-19, equilibrando os vários interesses em jogo.

Tenho dúvidas que num mundo sem redes sociais a resposta à Covid-19 tivesse assumido o carácter simplista e de exigência contundente que impõe aos Estados que travem uma guerra contra o vírus, até à sua anulação total, sem medir consequências. A polarização que as redes sociais provocam na formação da opinião, negando espaço para a construção de soluções de compromisso ou que explorem as normais tensões que subsistem sempre nas decisões complexas, estão a conduzir as sociedades mais desenvolvidas para regimes onde não há, no espaço público, lugar para a discussão, com uma imposição de soluções absolutas ou integrais que não deixam campo para a divergência, passo prévio e essencial na construção de convergências. Com a agravante que poucas opiniões hoje seguem grelhas ou padrões sustentados e coerentes; pelo contrário, assistimos a uma imposição de um vazio, em que cada indivíduo afirma “verdades” ou “valores” que em si não são nada, pois a maioria das pessoas não tem capacidade para construir as suas próprias referências de uma forma coerente. Uma cultura de opinião que é feita no momento, por referências construídas de raiz, por todos, a partir de um conjunto reduzido de elementos de análise, sem continuidade histórica ou memória factual, e sem referências minimamente consistentes – sem um fio condutor – condena as democracias à tirania e abre espaço aos manipuladores e demagogos.

Não me agrada viver num mundo onde, por exemplo, quem não alinha em toda a verdade oficial do momento é “negacionista” ou “antivaxxer” (mesmo que aceite a gravidade da Covid-19 e reconheça valia à vacinação), ou em que as vacinas, ou são recusadas, ou são vistas como receita única para capitular um vírus que – espantem-se – teima em subsistir com vida própria (à semelhança de todos os vírus com que ao longo dos séculos aprendemos a conviver, sem escolher derrotar). É igualmente preocupante ver como há, no polo inverso, tanta gente a recusar ver o que é óbvio, que este vírus tem características letais, e que a vacinação ajuda ao processo de normalização da pandemia, abrindo espaço para o seu enfraquecimento. Ou assistir a tantas decisões com consequências não negligenciáveis serem impostas na mais completa apatia, pondo em causa conquistas fundamentais das sociedades contemporâneas.

É, sobretudo, deprimente observar que, em 2021, estamos tão longe daquilo que Thomas Jefferson confidenciava, numa das suas cartas enviadas a James Madison, traduzindo-lhe o latinismo “malo periculosam, libertatem quam quietam servitutem”: “I prefer dangerous freedom over peaceful slavery”, escrevia. Eu próprio, quase 250 anos depois, preferiria assumir os riscos e as incertezas de um mundo que escolhe viver em liberdade, à quietude desta servidão inconsequente. Veremos nos próximos anos se o atual estado de bovinidade é transitório, ou se estamos de regresso às sociedades-rebanho.

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