Estaremos preparados para uma segunda vaga da Covid-19?

Se olharmos para o passado deste Governo, esta primeira leva de Covid-19 assemelha-se aos incêndios de Junho de 2017 em Pedrógão Grande, em que o Governo não estava minimamente preparado. Na segunda leva, se vier, o Governo vai dizer que está muito mais bem preparado para ela e depois… acontece como nos incêndios de Outubro de 2017 aquando do “Furacão Ofélia”?

A verdade é que a Covid-19 não é tão terrível como dizem os que nos pretendem assustar, mas também não é tão leve como outros querem fazer passar. Sempre presente, o 8 ou o 80, do pânico e exagero do medo para o “não se passa nada”, estes extremos mostram ansiedade e emotividade exageradas, muito pouco racionais.

Basta olhar para o número de novos casos de SARS-CoV-2 que são confirmados diariamente para perceber uma circulação persistente do novo coronavírus, que parece estar mais fraco nesta altura do ano, mas que não nos permite relaxar, pois o vírus ainda circula e poderá haver mesmo uma segunda fase.

Desde 12 de Maio, a incidência na Região de Lisboa e Vale do Tejo (RLVT) tem vindo sempre a crescer, até valores que rondam os 300 casos diários. Desde essa altura, a RLVT registou 8000 casos – mais do que a Austrália desde o início da pandemia. Só por causa dos números actuais da RLVT, o país passou de exemplo mundial, para o segundo país com maior crescimento de novos casos na Europa, o que está a prejudicar muitos sectores em Portugal e, em particular, a recuperação do turismo! É incompreensível e inaceitável!

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A Covid-19 tem especificidades únicas que a tornam bastante mais complexa do que outras doenças respiratórias, desde logo por não ser apenas do foro respiratório e pelo facto de ser muito mais contagiosa do que outras doenças comuns, como a gripe. Para além disso, a Covid-19 pode durar vários meses e os pacientes podem sofrer de sintomas debilitantes e a descrença de médicos e amigos. Por vergonha, muitas vezes, não têm coragem de o dizer a ninguém, nem sequer aos familiares, pois alguns destes pacientes ficam com sequelas motoras e neurológicas durante algum tempo e ainda não se sabe por quanto tempo.

Há estudos que indicam, que para além das complicações respiratórias, o vírus aloja-se no cérebro, onde tem impacto neurológico, danifica tecidos celulares, causando inflamações que podem provocar trombos cerebrais e vasculares, e até a morte do músculo cardíaco, levando a paragens cardíacas.

Apesar de tudo isso, tudo parece agora indicar que a Covid-19 não obrigava a confinamentos gerais, como aqueles que foram inicialmente implementados em países como a China, Itália ou Espanha, e parece ser um erro continuar a pensar-se que o confinamento generalizado resolve o problema de fundo, pois já se verificou que os confinamentos matam a economia e podem provocar excesso de mortalidade não-Covid.

Aliás, o excesso de mortalidade verificado em Portugal desde o início da pandemia pode ser muito superior ao que tem vindo a ser anunciado, pois entre 1 de março e 22 de abril, o número de óbitos acima do esperado pode ter chegado aos 4000, o que corresponde a um valor cinco vezes superior ao explicado pelas mortes atribuídas à Covid-19, como se constatou no recente estudo publicado na “Acta Médica Portuguesa” (revista científica da Ordem dos Médicos).

Os confinamentos foram inicialmente implementados em países sobrecarregados de casos, que não sabiam como lidar com a situação, para limitar o surto enquanto descobriam o que fazer. Agora que todos os países sabem o que fazer, podemos manter a economia aberta e reduzir o número de casos, como a Coreia do Sul, Taiwan, Vietnam, Hong Kong, República Checa, Colômbia, e outros, conseguiram.

Podíamos estar com a vida totalmente normal em todo o lado se implementássemos estratégias como a de tantos países já referidos como exemplos, em que a vida segue normalmente para todos os que não tiveram contacto com ninguém infectado.

Esses países optaram por uma estratégia de supressão que não retira liberdades a ninguém e não pararam a economia. A supressão tem a ver com estratégia e planeamento para segurança epidemiológica, baseada em Rastreio, Testes, Higiene e Protecção. A taxa de infecção natural da Covid-19 é muito elevada, mas com estratégias dessas, tínhamos apenas uma parte muito reduzida da sociedade a ser contagiada.

A ideia da imunidade de grupo continua viva e continuam a surgir artigos de opinião a favor da imunidade de grupo. Há vários virologistas que insistem em afirmar que vamos todos acabar por ceder ao vírus e que o mais importante é a protecção dos grupos de risco. Mesmo que se conseguisse proteger os mais idosos, o que já está provado (por exemplo na Suécia) é que seria muitíssimo mais complicado do que os teóricos vaticinaram e que se registaria uma mortalidade alta nos outros escalões etários. É por isso importante continuar a compreender cada vez melhor o vírus e a sua forma de transmissão, bem como apostar no desenvolvimento de tratamentos eficazes que possam eventualmente mudar as regras do jogo.

Temos que levar a vida normal mas também temos que ter cuidado. A DGS e o Governo deviam tratar os actuais surtos em Lisboa e no Algarve com o máximo cuidado e com uma estratégia de investigação e rastreio de todos os contactos, o mais detalhada possível. Uma pessoa infectada não pode voltar para uma casa que partilha com outras seis pessoas e onde não conseguirá manter sequer a distância. As pessoas com quem contactou deveriam todas fazer testes e não podem ficar a aguardar eternamente para os fazer ou mesmo ficar sem qualquer resposta. Todas as outras pessoas desse surto, que entretanto fiquem doentes, têm de ser tratadas ou acompanhadas e a população local tem de saber que tudo foi feito para poderem fazer a sua vida normal, cumprindo as recomendações. Infelizmente, não parece ser isso que se verifica.

Vamos sabendo de contágios de que ninguém na DGS faz o rastreio. Como o de um professor que esteve em contacto com dezenas de alunos, teve um teste positivo e não foi contactado por ninguém da DGS para rastrear as pessoas com quem terá estado.

A DGS pareceu querer mostrar que estava a testar muito, testando indiscriminadamente nos sectores da construção civil, da indústria, na distribuição alimentar, sem se basear em rastreios históricos de contactos, apenas aleatoriamente.

Esse é, aliás, um dos aspectos de que mais nos vangloriamos, o de testar muito, mais do que qualquer outro país, colocando-nos sempre na lista dos melhores do mundo. Mas a verdade é que há um grande número de situações em que nos apercebemos de casos de pessoas infectadas, cujos contactos mais recentes não são testados (na verdade, recebem informação da DGS muitos dias depois para ficaram em casa e nada mais).

Ou seja, os testes em Portugal não parecem ser tão organizados, estruturados e direccionados quanto deviam ser e, no entanto, o nosso Primeiro-Ministro diz que não basta comparar o número de casos positivos ou negativos sem ter em conta o número de testes que cada país faz.

António Costa disse mesmo que em relação aos países que colocaram reservas aos voos vindos de Portugal, só o Chipre, a Estónia e a Letónia estão em melhores condições do que nós e que países como a Áustria e a República Checa têm um número de testes de tal forma inferior ao nosso, que os dados deles não são comparáveis com os dados de Portugal.

Só que o Primeiro-Ministro não fala do mais importante. Não é a quantidade de testes que se faz que importa, mas qual a percentagem de testes positivos no número total de testes feitos, ou dito de outra forma, qual o número de testes feitos para cada caso encontrado.

Ou seja, a Áustria, como tem muito menos infectados que Portugal, não precisa de testar tanto (o que importa é identificar os infectados para cada conjunto de testes realizados), enquanto Portugal, que tem milhares de casos por semana, tem de testar muito mais.

De todos os países que António Costa referiu, todos estão muito melhor que nós e todos testam mais por cada caso encontrado, ou seja, têm a situação controlada. Isso não quer dizer que Portugal não teste muito, mas precisamos de o fazer, e muito mais, para estar tão bem quanto os outros.

O Governo, com a anuência do Presidente da República, e a falta de alternativas apresentadas pelo principal partido da oposição, aposta muito na imagem e parece ficar aquém em medidas concretas para deter a transmissão do vírus. Tal como no início da epidemia, o Governo e a DGS tardam em implementar essas medidas.

A Ministra da Saúde, Marta Temido, dizia no outro dia que estamos com dificuldades em quebrar as cadeias de contágio, o que não é de estranhar, pois para as quebrar é preciso rastreá-las ao pormenor, coisa que a DGS parece não conseguir fazer. Devia-se apostar numa resposta rápida, mesmo que o combate à pandemia tenha mais comparações a maratonas do que a corridas – a rapidez deve ser a chave de sucesso nesta fase, circunscrevendo os casos e quebrando as cadeias de transmissão.

Há uma necessidade de reforço dos meios de combate para garantir a intensidade e a rapidez de respostas exigidas. A nossa sugestão de implementação de um Gabinete de Pilotagem da Covid-19, com investigadores em grande número para seguirem as cadeias de contágio, ainda não se concretizou, e a app para rastreio de contágios desenvolvida pelo INESCTEC nunca foi disponibilizada.

O Gabinete de Pilotagem da Covid-19 poderia ajudar a coordenar o trabalho a ser feito no terreno, no rastreio, nos testes, na contenção, na prevenção e tratamento hospitalar, como agora, por exemplo, na Região de Lisboa e Vale do Tejo.

Perdidos dezenas de milhares de milhões de euros na economia, depois de quase quatro meses para o Governo se preparar, enquanto milhares de empresas lutam pela sobrevivência e pessoas continuam a ser infectadas, se calhar contratar algum pessoal adicional para rastrear e isolar casos não seria má ideia.

E há ainda o problema da adesão à app de que tanto se tem falado – o ideal seria tê-la pronta e disponível, pois havendo uma mutação do vírus ou outras alterações que o tornem mais transmissível ou mortal, ela será de grande ajuda. Os downloads irão disparar se as pessoas tiverem medo e se perceberem que a alternativa é de novo o confinamento, mas já se viu que isso, para já, é pouco provável em países disciplinados.

Adicionalmente, o Governo empenha-se na promoção de eventos de natureza económica, lúdica, cultural e desportiva, pese embora os riscos que algumas dessas actividades representam para a disseminação da doença. Mas não traçou ainda qualquer plano para uma retoma presencial do ensino.

Não se compreende que se autorize tudo e mais alguma coisa, mas que não haja um plano do Ministério da Educação, em ligação com a DGS, para a abertura presencial do ano lectivo de 2020/2021. Já deveríamos ter orientações relativamente à forma como deverá reabrir o novo ano lectivo em situação de pandemia e de que forma deverá este ser organizado. É de enorme importância o ensino presencial para o desenvolvimento educativo e social da actual geração de alunos, para a organização familiar e para a retoma que necessitamos da economia. E para que tal aconteça, o Governo tem de transmitir confiança também aos pais.

Mas não é só em Portugal. Em geral, os políticos ocidentais tiraram proveito do medo de parte da população e da irresponsabilidade natural de outra parte da população, alimentaram uma divisão artificial e fizeram com que uns defendam o 8 e outros defendam o 80. Mais uma vez, temos uma divisão muito grande na sociedade,e temos assistido a isso ultimamente em todo o mundo ocidental: os nossos líderes estão a dividir para reinar. Temos de ser capazes de evitar cair nesta ratoeira civilizacional.

Existe, claramente, uma luta entre o eixo da recuperação económica e o eixo da saúde pública, mas as medidas associadas a este último, estão a impedir a recuperação da economia e está claro que os países não aguentam mais uma queda no PIB semelhante à do último trimestre. Parece, porém, que os políticos ainda não se aperceberam que quanto mais apostarem em medidas de estratégia e de segurança epidemiológica em saúde pública, mais confiança transmitem ao cidadão e mais rapidamente a economia irá recuperar. Enquanto a ciência avança para a vacina e tratamentos, esta crise tem vindo a demonstrar, em múltiplas dimensões, o impacto da falta de sagacidade e bom senso dos líderes nas nossas vidas.

Uma outra grande diferença entre a maioria dos países asiáticos e os países ocidentais é a utilização generalizada das máscaras. A OMS já veio reconhecer, aliás, que as máscaras devem afinal ser usadas em público. A OMS esteve à espera de evidências científicas para recomendar uma das medidas mais baratas e que poderia ter sido implementada muito mais cedo e sem qualquer risco. Como dizia, e bem, Francisco Froes, a ausência de evidência não é evidência da ausência (de benefício). Mesmo que não haja evidência científica que os paraquedas funcionem sempre, ninguém tem dúvidas que eles são úteis.

Entretanto, lá apareceram as evidências científicas, muito depois de vários países como a República Checa ou o Japão terem ultrapassado a crise sem grandes problemas, enquanto noutros morriam dezenas de milhares de pessoas. Há estudos que evidenciam mesmo que as máscaras por si só, já limitam o “R” abaixo de 1, mas ainda hoje, a recomendação é feita de forma leviana, de forma a salvar a face e a manter alguma consistência com o passado: “Usar quando houver dificuldade em manter o distanciamento social”, etc.

Esta recomendação continua a estar enquadrada num tipo de comunicação fraca e que continuará a fazer estragos. Em Portugal, será muito mais eficaz insistir com os jovens para usarem sempre máscara quando estiverem em grupo, do que as mensagens ambíguas que têm sido passadas pela DGS. O ónus de termos mais casos, mesmo centrados em jovens, está à vista na suspensão de consultas em hospitais este mês e ainda será particularmente grave numa potencial extensão da telescola para o próximo ano lectivo.

O Governo está a abrir as fronteiras para dar uma ajuda nomeadamente ao turismo, mas coloca-se desde logo uma questão: irá ser feito rastreio epidemiológico nos aeroportos? Sabemos que há ecrãs de controlo de temperatura, mas questionam-se os passageiros em relação à origem dos seus voos? Tenta-se perceber se eles passaram por regiões de risco elevado? Pede-se para reportarem algum sintoma anormal? É-lhes dado algum tipo de indicação sobre o que fazer nesses casos?

Do que vamos ouvindo, não, e isso é preocupante. Tal como nos incêndios, este Governo não aposta na prevenção, mas sim no combate. É um risco demasiado elevado e, como se vê pelo que se está a passar na Região de Lisboa e Vale do Tejo, pode facilmente e rapidamente tomar proporções grandes. O que se estará a passar no Algarve? Haverá controlo epidemiológico da situação? Tudo isto gera incertezas e pouca confiança na segurança epidemiológica do país.

Desde que se actue rapidamente sobre todos os surtos que surjam, mesmo com as fronteiras abertas, consegue-se controlar a situação, mas os responsáveis pela saúde pública são poucos e, sobretudo, trabalham sozinhos, não têm uma equipa de rastreio com eles.

Muitas medidas podem ser tomadas para interromper a transmissão da Covid-19, nomeadamente testes, rastreio de contactos, isolamento, máscaras universais, higiene, distanciamento físico, educação pública, restrições de viagens e restrições nos ajuntamentos de pessoas. Todos os países podem aplicar um “mix” dessas medidas, uma vez que estão comprovadas, são muito mais baratas e podem reduzir drasticamente a epidemia.

Quem quer que diga que tudo isto não pode ser feito, não estudou devidamente a lição do que se passou até agora. Não tomar essas medidas e deixar a Covid-19 alastrar só causará mais doenças, mais mortes e uma economia pior, com as consequências da incompetência do Estado a caírem outra vez em cima de nós.

Agradecimentos ao Think Tank informal “INFO | Covid-19” e ao Pedro Ribas de Araújo pelos seus contributos.